Wednesday, December 31, 2003

a paz dos bravos

“A paz continua ainda possível. E, se é possível, então a paz é um dever!” Estas palavras de alento e de advertência serão proclamadas amanhã por João Paulo II para a celebração de mais um Dia Mundial da Paz. Velho e doente, o Papa mantém-se firme na resistência ao fatalismo e ao determinismo das soluções finais. Contra todos os que, do alto do seu imenso poder, proclamam que o uso da força é o caminho dos bravos, o Papa exorta-nos à coragem única do perdão e da paz. Desafia crentes e não crentes. Mas manda um recado especial para os cristãos: afinal de contas, “o esforço de educar a nós mesmos e aos outros para a paz, nós, cristãos, sentimo-lo como fazendo parte da índole mesma da nossa religião.” Pela prática que vai por aí, bem se pode adivinhar que, diante destas palavras destemidas, haja muito cristão que, lá no seu íntimo, pense que o Papa perdeu definitivamente o discernimento...

Tuesday, December 30, 2003

a suspensão do tempo

Esta é talvez a semana mais estranha do ano. crentes e não crentes viveram os últimos tempos mergulhados em discursos de fraternidade e de simplicidade prometidas. E agora vem esta estranha pausa de uns dias antes da chegada do novo ano. É como se fosse uma suspensão do tempo, na expectativa de que o que se disse e os gestos que se ensaiaram ganhem densidade e se tornem novo código de relacionamento real entre as pessoas. Este é, poranto, um tempo de transição. Em que o já da novidade se tornou visível e em que o ainda não da sua concretização plena ainda nos desafia.

Friday, December 26, 2003

paradoxo

O que se celebrou ontem não foi o aparecimento fantástico de um deus, mas sim o nascimento simples de uma criança. Esta glória da fragilidade é a grande provocação que os cristãos têm que fazer ao mundo. E só o poderão fazer se assumirem, até às últimas consequências, o caminho que leva do Natal à Páscoa. Esta é uma verdade essencial: se Deus se fez um ser humano, os homens rapidamente se cansaram dele e o quiseram banir do mundo e da História.

Wednesday, December 24, 2003

sem ajuda

Em Pequim, hoje, não haverá presépios vivos nas praças principais. Em Riad, hoje, não haverá sinos a repicar para a missa do galo. Na aldeia perdida do interior do Turquemenistão, hoje, não haverá sapatinhos na chaminé à espera do fascínio dos presentes. Antecipação de uma humanidade simples e reconciliada, o Natal de Jesus da Nazaré está longe de ser universal. Seria tudo mais fácil se adorássemos todos o mesmo Deus. Mas não adoramos. Isso, porém, longe de ser uma barreira intransponível, é um desafio ainda mais forte à nossa vontade de materializarmos a reconciliação do Natal, mesmo sem a ajuda de um Deus comum.

Monday, December 22, 2003

fugas e regressos

Quero hoje falar para o meu amigo que viaja sempre para o mais longe possível na altura do Natal. E anuncia que o faz para fugir do Natal dos outros. Ele foge das luzes e das compras, mas foge sobretudo das promessas de fraternidade calorosas e dos discursos de reconciliação mais vibrantes em cada ano que passa. Quero-te dizer que percebo a tua indignação e que adivinho a tua dificuldade em entender aquilo que achas não ser mais do que pieguice hipócrita. É chocante ver a facilidade com que tanta gente veste a capa do desprendimento e da bondade por uns dias, eu sei. Mas não fujas. Ou melhor, se queres manter o teu brio e escapar ao fingimento colectivo, convido-te a passar estes dias, estas noites, com os sem-abrigo das nossas ruas mais frias; a passares umas horas com os doentes sem esperança e sem companhia; a conversares um pouco mais neste tempo com as famílias de imigrantes sem papéis e a escutares até ao fim as suas angústias. Faz o teu próprio teste, antes de te enojares com a leviandade dos outros. E admite, por um momento, que esses outros fingem ser fiéis à bondade porque isso lhes é vital, pelo menos uma vez por ano, para travar a deriva de agressividade mal contida do seu dia-a-dia. Não aceitarias, por certo, que te desejasse um feliz Natal. Mas deixa-me desejar-te uns dias de maior proximidade contigo mesmo.

Sunday, December 21, 2003

revolução

E agora vem aí a semana da diferença. Vão ser dias de solidariedade, de afecto, de primazia dos outros sobre nós próprios, de atenção aos mais fracos, de mão estendida a quem nos criticou, de pausa na conflitualidade mais exacerbada. Os cépticos, quase sempre sisudos e desconfiados da bondade, dirão que a hipocrisia anda de novo no ar. Eu prefiro pensar que, em muitos sítios do mundo, há uma semana de revolução por ano.

Wednesday, December 17, 2003

tão amigos que nós somos...

De vez em quando lá vem o comentário social: “Ah! Conhecemo-nos muito bem. Até nos tratamos por tu…” Sempre estranhei que os cristãos não tornassem pública uma semelhante intimidade com Deus. A maioria dos que dizem privar com Ele exibem temor e distância. Quando há alguma proximidade assumida entre os crentes e Deus, é quase sempre por razões comerciais: eles fazem um pedido e esperam que Deus o satisfaça. Gostava que pudesse chegar o dia em que, com naturalidade e até candura, pudéssemos responder a quem nos pergunta se cremos em Deus, dizendo: “Conheço-O muito bem, tratamo-nos por tu!”

Tuesday, December 16, 2003

felizes, mas ao longe...

Uma vez por ano, as prisões entram-nos em casa. Mas só pela televisão… São as festas de Natal nas prisões, que nos trazem rostos satisfeitos e notícias de grande espírito de camaradagem atrás das grades. São imagens que enganam. O sofrimento, a degradação e a ausência de direitos e de dignidade não aparecem nas fotografias nem nas reportagens. E, sobretudo, o que não nos mostram é o nosso medo de encararmos de frente essa realidade. Um medo que nos leva a querer prisões só fora das cidades e a passar por elas a fugir e de cara virada para o outro lado…

Thursday, December 11, 2003

as relações directas

Todos os anos morrem sete milhões de pessoas nos países mais pobres, vítimas de doenças como a sida, a tuberculose ou a malária. Sem o empenhamento do mundo rico, este número tenderá a aumentar. Mas o mundo rico insiste em assobiar para o ar. Uma pequena parte dos milhões gastos no combate militar à obsessão terrorista chegaria para desactivar solidariamente a bomba-relógio da fome e da miséria humana. É claro que não há uma relação directa entre terrorismo e pobreza. Mas é igualmente óbvio que há uma relação directa entre o pecado da falta de solidariedade e a angústia dos que – com razão ou sem ela – se sentem cercados de perigos e ameaças.

Wednesday, December 10, 2003

direitos humanos

Há 55 anos foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje é dia de nos lembrarmos dos direitos de todos. Hoje é dia de a Igreja pedir perdão e mostrar sincero arrependimento por ter, durante tempo demais, olhado com suspeição para esta forma de emancipação. Hoje é dia de reforçarmos, todos, o nosso compromisso para com as lutas pela dignidade em todo o mundo. Hoje é dia de nos curvarmos perante a memória daqueles e daquelas que ousaram pôr em causa os cânones do seu tempo por ofenderem os direitos de todos e foram, por isso, considerados loucos ou terroristas. Hoje é dia de reconhecermos a imperfeição dos nossos caminhos e das nossas regras e de, mais lucidamente, assimilarmos que a dignidade das pessoas vale sempre mais que qualquer ordem social, por mais perfeita que esta pareça ser. Hoje é dia dos direitos humanos. Amén.

Monday, December 08, 2003

Não pode ser só um sobressalto biológico – uma mulher que concebe mantendo a virgindade – que os cristãos celebram hoje. Um fenómeno natural, por mais estranho que seja, não chega para justificar uma celebração de fé. É necessário mais do que isso. É necessária uma forte interpelação, um abanão forte no nosso estilo de vida. A pureza de Maria, que hoje se celebra, só pode ser isso – um apelo profundo a um coração limpo, a um olhar casto, à rejeição do prazer sem apoio nos sentimentos mais densos da vida. A concepção, todas as concepções, que acolhem estes desafios de forma radical, podem aspirar ao dom de serem verdadeiramente imaculados.

Friday, December 05, 2003

Contemplo o mar, horas a fio, e não me canso. Esmaga-me a sua força, inebria-me o seu movimento perpétuo, questiona-me a sua imensidão. Mas sobretudo interpela-me a indivisibilidade do mar. Talvez mais do que em terra, a existência de fronteiras revela-se em todo o seu absurdo no mar. Não pode haver muros no mar. Os cristãos, que anunciam o princípio fundamental do destino universal dos bens, têm no mar a prova maior de que, realmente, tudo deve ser de todos.

Mia Couto escreveu um dia que “a janela é a casa a querer ser mundo”. Uma casa pode ser um refúgio, uma espécie de castelo em que nos fechamos contra os outros, que vemos como incómodos intrusos. Os prédios sem rosto dos subúrbios das nossas cidades são isso mesmo., Mas há sempre o desafio de uma janela. O mundo lá fora nunca cessa de nos chamar à abertura e à atenção aos outros. O que é que valorizamos mais nas casas das nossas vidas: a segurança da fechadura da porta ou a amplitude das janelas?

Na rádio, na televisão, nos jornais, abundam as colaborações especializadas de psicólogos. Vêm falar-nos de afectos espezinhados, de auto-estima mal tratada, de receitas e de segredos para o bem-estar íntimo de cada um. Isto tudo faz-me pensar. Lembro-me que, há não muitos anos, os segredos da felicidade eram dados por analistas políticos, por economistas ou por homens de leis. O excesso de confiança na transformação das estruturas deu lugar ao excesso de investimento na conservação das capacidades individuais. Ao heroísmo das grandes massas sucedeu a reserva da solidão. Em ambos os registos se sente a mesma frustração de ver a verdadeira felicidade fugir por entre os dedos. Nem tutores dos povos nem engenheiros do ego a conseguem revelar.

Thursday, December 04, 2003

A sacralização da disciplina do orçamento não pode servir para esquecer as angústias e os sonhos das pessoas concretas. Já houve quem dissesse o óbvio, que há mais vida para além do orçamento. Talvez esteja agora na altura de dar outro passo arrojado: o de propor que a riqueza das nações seja medida não pelo produto interno bruto mas sim pela felicidade interna bruta. Precisamos de regressar sempre à vida concreta de cada um. Só ela é o teste do sucesso ou fracasso das políticas. Porque de pouco nos valerá ter bons índices económicos se a tristeza ou o desânimo não forem superados.

Tuesday, December 02, 2003

Os tempos est�o muito turbulentos na universidade portuguesa. Quem pense que a quest�o se esgota no pagamento ou n�o de propinas est� redondamente enganado. O mal-estar � muito fundo e radica, em �ltima an�lise, na falta de um horizonte de confian�a e de est�mulo para quem entrega a sua vida a formar-se ou a formar gera��es sucessivas. Quando, no dia-a-dia, os crit�rios de felicidade dominantes deixaram de exigir trabalho e esfor�o, para qu� estudar, para qu� ensinar, para qu� investigar? Quando, no dia-a-dia, � maior o reconhecimento social para quem ludibria a lei ou foge aos impostos do que para quem luta pelos seus direitos de cidadania, para qu� estudar, para qu� ensinar, para qu� investigar? A crise funda da universidade �, mais que tudo, um sinal de crise funda da sociedade portuguesa. Que palavra t�m os crist�os para quem est� no cora��o desta crise? De esperan�a fundada ou de condena��o �cida?