Friday, April 28, 2006

perder para ganhar

Perder tempo é um grande privilégio, disse há dias um escritor prestigiado. É um pensamento sábio. Andamos sempre atarefados à procura de ganhar tempo ou de não gastar tempo. Vemos o tempo como um capital, e submetemo-nos à lei suprema da sua acumulação. Somos escravos do tempo e da vertigem de que não há tempo a perder. Pelo meio fica a beleza e a contemplação, o silêncio e tudo o que se faz desinteressadamente. Perder tempo para ganhar a vida pode ser sinónimo de conversão.

Wednesday, April 26, 2006

ex machina

Há um lindo poema de Rilke que diz: “Dá, oh Senhor, a cada um a sua própria morte”. Vinte anos depois da catástrofe de Chernobyl, a prece de Rilke traz-nos à memória a massa dos que padeceram subitamente e dos muitos mais que foram degenerando sem controlo. O desastre nuclear foi também um aviso para os nossos limites, contra o sonho de uma tecnologia perfeita e sem mácula. Em tempos de grande ansiedade, diante da alta dos preços do petróleo e das ameaças terroristas, o messianismo tecnológico ganha adeptos. É neste tempo que a coragem de pôr a criação – humanidade e natureza – no centro de todas as políticas se torna mais necessária.

Monday, April 24, 2006

amar a liberdade

A liberdade pode ser um duche frio. Porque é sempre a liberdade de errar, é sempre a liberdade de seguir o caminho sem saída, é sempre opção e risco. Mas, ao contrário da liberdade de voar da cria que sai do ninho, a liberdade das pessoas habita nesse espaço insondável e ilegível que é a consciência de cada um/a. Contra todas as tutelas políticas e religiosas, foi essa mensagem da liberdade radical de cada filho de Deus que Jesus veio anunciar. Só quem ama a liberdade percebe esse traço essencial do cristianismo.

Friday, April 21, 2006

aprender

Foram precisos o holocausto, as ditaduras militares na América Latina, a guerra na Bósnia, para que crentes e não crentes tomassem consciência, à escala mundial, de que os direitos de liberdade são um bem inestimável. Será que precisamos, crentes e não crentes, de um holocausto social e económico para que se assuma o desemprego, a exclusão e a fome como um inaceitável universal? Ou, pior ainda, será que já estamos, crentes e não crentes, nesse holocausto e não nos demos conta?

Wednesday, April 19, 2006

do outro mundo

Neste mundo, a indigestão é tida como uma doença, mas a fome não. Neste mundo, a demora numa decisão judicial sobre indemnizações é considerada uma violação dos direitos humanos, mas a demora numa consulta médica não. Neste mundo, as guerras em África são entre tribos enquanto as guerras na Europa são entre grupos etno-religiosos. Neste mundo, as ordens de especulação em bolsa devem poder circular à velocidade da luz mas as pessoas que passam a fronteira na busca de melhor vida são criminosas virtuais e recambiadas para os seus sítios de miséria. Num mundo assim, as bem-aventuranças estão condenadas a ser um escândalo.

Monday, April 17, 2006

novos pecados

Conta Eduardo Galeano que o velho pobre da aldeia usava sempre a mesma roupa, fosse Inverno ou Verão. E que, diante disso, a gente à sua volta costumava comentar: “é um valente, nunca tem frio!”. E Galeano remata: “Frio tinha, não tinha era um agasalho”. Deixámos que a injustiça e a pobreza penetrassem de tal forma no nosso quotidiano que já não as sabemos reconhecer. Talvez fosse acertado considerar a distracção grave como pecado. Ou talvez nem seja necessário. Porque é de desamor que se trata.

Friday, April 14, 2006

estranheza

Esta entrega total, definitiva, é estranha aos nossos olhos. Propuseram-lhe o senso comum – salva a tua pele – e ele recusou. O que o nosso tempo não consegue – não conseguirá nunca – entender é que não tenha havido jogo negocial de contrapartidas nem encenação para o telejornal da noite. Entrega, apenas. Por essa coisa esquisita chamada amor.

Wednesday, April 12, 2006

desilusão

Desiludam-se os cultores do brilho mediático: a semana santa arranca sem nenhum sinal espectacular do divino. Bem ao contrário, aliás: uma dúzia de amigos que se junta para comer e beber e que experimenta na partilha do mais trivial (o pão e o vinho) o apelo fundo a uma fraternidade genuína, feita não de convergência táctica de interesses mas de entrega plena de uns pelos outros. É difícil entender que este episódio vulgar seja fundador da fé de tanta gente. Uma tal simplicidade desarma-nos a todos, crentes e não crentes. E provoca-nos.

Monday, April 10, 2006

espessura

Fica-nos de pequenos a memória da sucessão vertiginosa de histórias que a semana santa condensa. Este é o tempo mais veloz do cristianismo. E, apesar de repetido ano após ano, falta-nos sempre capacidade para integrar todas as histórias da semana santa na nossa história pessoal. É essa a força significante da semana que agora começa: ela não é um folhetim, é a síntese espessa da altíssima exigência a que cada cristão está desafiado.

Friday, April 07, 2006

dividir para multiplicar

Ou dividimos agora a riqueza ou vamos ter que dividir a pobreza e as suas consequências. O grito vem da favela do Rio, mas podia vir de qualquer outro lado. É o grito da razão que mostra a loucura deste pecado geral da indiferença. Enquanto continuarmos a pensar que só temos que partilhar o que não faz falta, continuará a crescer a bomba da indignação que a indignidade alimenta. E só então, com revoltas e tumultos, com actos de violência e de terror, despertaremos para a insustentabilidade de uma vida assim. Por prevenção defensiva ou por lucidez fraterna, dividamos a riqueza. E assumamos a pobreza dos outros como um pecado nosso.

Wednesday, April 05, 2006

necessidades básicas

Uma necessidade surge quando nos damos conta de uma discrepância entre como as coisas são e como deveriam ser e quando, em simultâneo, assumimos a consciência de que podemos fazer com que as coisas sejam de outra maneira. É por isso que ser crente é uma resposta a uma necessidade profunda. Ser crente é tornar viva aquela consciência. Não até ao fim. Mas para lá dele.

Monday, April 03, 2006

o problema

Na leitura de um depoimento de um activista dos direitos humanos brasileiro, aprendi que é mais que tempo de inverter a ordem por que costumamos apresentar as coisas. Não é a pobreza que é o problema do país, é o país que é o problema da pobreza, dizia ele. É verdade. O problema não é haver pobres em número crescente entre nós; o problema é a indiferença e a inacção dos não pobres que permite que essa situação se perpetue. Mais do que um rendimento de inserção, os pobres exigem que haja um país que os insira. E que os torne protagonistas da luta de todos contra a pobreza.