Monday, August 30, 2004

crónica da solidão

Conta Eduardo Galeano que foi numa véspera de Natal, no Hospital Pediátrico de Manágua. O director clínico dava uma última volta pelas enfermarias antes de sair para a consoada em família. Foi então que sentiu uns passitos suaves atrás de si e, ao voltar-se, foi interpelado por um dos meninos internados, precisamente aquele que a morte seduzia já para os seus braços. E o menino pediu-lhe: “Diz a… diz a alguém que eu estou aqui.”

Friday, August 27, 2004

o lado vazio

Talvez fotografado do espaço, Portugal nestes dias de Verão aparecesse com uma mancha densa junto ao litoral e quase vazio no interior. Já era assim antes, mas estes dias de verão acentuaram essa tendência para dois países diferentes num só território. Cabe também aos cristãos interrogar este país que se verte no mar. Herdeiros de um punhado de pescadores tanto como de um povo que sofreu a provação do deserto, os cristãos devem saber julgar à luz do Evangelho o lado vazio da nossa fotografia tirada do espaço em dia de verão

Wednesday, August 25, 2004

o dom da poesia

Os poetas são postos quase sempre no lado crítico da vida. Vezes sem conta, lá nos aparece quem diga: “pois é, é tudo muito bonito, mas é mesmo só poesia...”. Com esse sarcasmo vem associada uma visão das coisas que dá primazia ao concreto, ao que está, ao que se vê, ao que rende. Os poetas, esses, põem palavras no indizível. E isso condena-os aos olhos dos realistas de todos os tipos.

Monday, August 23, 2004

o dom do dom

Talvez mais no Verão do que no resto do ano saibamos dar valor aos parques e reservas naturais. O Gerês, Montesinho, o Tejo Internacional ou a Arrábida são sítios de frescura, de diversidade e de contemplação. A sociedade portuguesa tem tratado mal esses tesouros. Não só pela falta de políticas públicas que os preservem para as gerações presentes e vindouras mas, mais que tudo, pela incompreensão generalizada face à preservação como política. Porque ela é a antítese da especulação e da rentabilização. A gratuidade não faz, definitivamente, parte do lado dominante das coisas. O dom, como dom, tornou-se num desafio incómodo.

Friday, August 20, 2004

o dom da festa

Este é também o tempo das festas e romarias. Com música estridente, com quermesses, com grinaldas de papel ou com lágrimas de foguetes, as festas estão aí a cativar a vibração e o entusiasmo de velhos e novos. Para muitos é uma pequenina excepção no meio de uma vida inteira de agruras e de dificuldades. Com a sua insistência na austeridade e na prudência, as nossas comunidades eclesiais têm mostrado uma grande dificuldade em acolher a festa como uma necessidade vital. As festas de Agosto devem-nos despertar para o desafio que a alegria ainda continua a ser para muitos cristãos.

Thursday, August 19, 2004

o dom das páginas

São Tomé afirmava que era preciso ver para crer. É urgente hoje clamar bem alto que é preciso ler para ver. Fazemo-nos de muitas coisas. De memórias e de experiências, de fidelidades e de paixões, de coragens e de medos. E no meio disso tudo há sempre livros. O retrato do outro que queríamos ter sido foi num livro que o vimos. O desafio irrecusável de compromisso transformador foi num livro que o descobrimos. O traço da alma humana que nos passava ao lado, foi um livro que no-lo revelou. Diz-se do cristianismo que é uma das religiões do livro. Levemos isso muito a sério. E saibamos olhar os livros como um dos maiores dons da criação.

Monday, August 16, 2004

os homens pequenos

Também de frases feitas está o inferno cheio. Dizer que as crianças são muito importantes porque são os homens e mulheres de amanhã é não só uma tremenda banalidade como uma distracção, talvez inconsciente, do essencial. E o essencial é que as crianças são muito importantes porque... são crianças. Elas não são um investimento, nem um capital que vai render juros. São pessoas. E são-no já. Vê-las só projectadas no futuro faz delas objectos, ao serviço das nossas expectativas, e não sujeitos, com direitos plenos. Os direitos das crianças são direitos humanos como os outros, não são um depósito bancário.

Friday, August 13, 2004

reforma ou revolução? (parte II)

No verão muda-se de vida. Por uns dias, é certo. Mas muda-se. O que não se muda é a vida. Porque mudar de vida é mudar os hábitos, trocar os horários, ter outros gestos e novas palavras. Agora, mudar de vida sem mudar a vida é certamente pouco. E isso é que vale a pena.

Wednesday, August 11, 2004

reforma ou revolução?

Para que é que andamos a retemperar forças nestes dias? Paramos porque os outros também param? Descansamos porque os outros também descansam? O que é que vemos quando pensamos nos dias do futuro imediato depois das férias? A continuação, ponto por ponto, da correria e do stress que nos pediu o descanso que agora temos? As férias são um intervalo de lucidez ou uma peça mais na irracionalidade da nossa vida?

Monday, August 09, 2004

no poço da morte

Muita gente muda de vida depois de um grande susto de saúde. A visão do fim próximo convoca-nos a inversões totais no nosso modo de viver. Gente que esteve à beira da morte passa a trabalhar menos, a comer melhor, a dar menos importância a futilidades. Isso é o normal. Mas que seja preciso chegar à fala com a morte para que tal aconteça dá que pensar. Que seja necessária a interpelação mais radical para encararmos o gozo da vida como um dom é a prova da nossa pequenez. E da nossa preguiça.

Friday, August 06, 2004

um só

Nas comidas ligeiras, nas roupas leves, no tempo dado ao descanso, as férias de verão são para muitos um tempo raro de reencontro com o corpo. Muitos de nós fomos habituados a pensar no corpo como um inimigo da alma. E esse tremendo disparate fez-se cultura e até código. Talvez o verão seja o tempo certo para tomarmos consciência de que não somos dois mas um só. E que é enquanto um só que nos queremos dignos.

Wednesday, August 04, 2004

povo que lavas no rio

O país voltou a arder. Voltará a ser assim no próximo ano. E nos seguintes, por certo. Agora virão os discursos que anunciam para breve planos de recuperação, de política florestal e de ordenamento. Depois virão as chuvas. E na enchurrada serão arrastadas estas urgências de verão. E pronto, tudo voltará a ser como foi. Que o nosso descanso de férias seja alibi para aceitarmos esta amnésia cobarde é algo absolutamente inaceitável.

Monday, August 02, 2004

é fartar...

Todos os verões o festim das contratações milionárias pelas equipas de futebol assume dimensões de escândalo público. O entretenimento do povo custa caro. Mas o que mais inquieta é não se ouvirem vozes firmes que denunciem quanto tudo isto tem de insuportável à luz de um mínimo de decência. O chamado mercado de transferências é um lugar de indignidade. Dos que o animam e dos que se animam com ele.