Friday, September 30, 2005

as cidades invisíveis

Em tempo de eleições autárquicas, há cidades invisíveis dentro das cidades em que habitamos que vêm à tona. São vidas de miséria, de aflição desprezada, de abandono, de exclusão. Lá por trás das barreiras que o betão e o alumínio ergueram esconde-se a falta de saneamento e de decência, mas sobretudo a falta de humanidade. Na habitação, nas infra-estruturas, na saúde e nas políticas sociais há muita gente condenada à invisibilidade. Não sei se são ouvidos nas sondagens. Não sei se os seus votos decidem. Mas tenho a certeza de que não vale a pena haver eleições se a primeira prioridade não for servi-los.

Wednesday, September 28, 2005

défices

O desemprego aflige cada vez mais pessoas no nosso país. Cresce todo o desemprego, mas o de longa duração é aquele cujo crescimento deixa marcas mais fundas na nossa sociedade. Visivelmente, esta não é uma preocupação passageira, que um dia desaparecerá com políticas mais acertadas. Não, é um desafio que persistirá sempre. Por isso é tão estranho que, entre os cristãos, este problema seja tão pouco reflectido e que, a maior parte das vezes, a Igreja se limite a uma presença assistencial para com casos pontuais mais dramáticos. Faz falta uma interpelação corajosa e profética à sociedade portuguesa, capaz de pôr com frontalidade a questão da partilha do trabalho, da responsabilidade social pelo emprego e da prática de uma cultura de direitos humanos. Mas onde estão os profetas?

Monday, September 26, 2005

a outra segurança

Passou despercebido no ruído mediático. As Comissões Justiça e Paz da Europa reuniram em Portugal nos últimos dias. E pediram aos países deste continente que ratificassem a Convenção Internacional sobre os Direitos dos Imigrantes e das suas Famílias. O que se passa com esse tratado, cada vez mais essencial, é uma vergonha: desde 1990, quando foi adoptado, foi ratificado apenas por 46 países. E desses, nenhum é da União Europeia. Por isso, neste mundo de 195 milhões de imigrantes, são tão importantes as palavras das Comissões Justiça e Paz da Europa: “A Igreja apela à sociedade dizendo: ama o teu vizinho. Num mundo globalizado, onde o fosso entre os que têm e os que nada têm é cada vez maior, este imperativo cristão desafia os nossos conceitos europeus de segurança e de identidade”. A retórica dos direitos humanos muitas vezes serve de disfarce a um fechamento frio e cínico. A ele só se pode opor a abertura da fraternidade verdadeira.

Friday, September 23, 2005

humanidade organizada

A reforma das Nações Unidas fracassou no essencial. O que estava em causa era não menos do que garantir uma organização sólida e credível para reflectir, no plano da governação, a unidade de todo o género humano. Porque a unidade da família humana não é um sonho nem um slogan dos que crêem na igualdade de todos os filhos de Deus. Não, a unidade do género humano supõe cada vez mais políticas concretas que lhe dêem rosto (e um rosto justo) – na economia, no ambiente, na saúde, na gestão da diversidade cultural. Por isso, as estratégias para sabotar esta reforma da ONU e fazer prevalecer os interesses de alguns Estados não tem outro nome senão pecado.

Wednesday, September 21, 2005

negros são os campos

Dói-nos saber dos campos de concentração do passado. Mas passamos bem com os campos de refugiados do presente. Não são campos, são cidades enxameadas de multidões de gente sem outro horizonte senão o da sobrevivência diária. Não são sítios de passagem provisória: em alguns, sucedem-se as gerações que ali nasceram e sempre ali viveram. São buracos negros da dignidade e da decência. Os muros que os cercam são tanto os físicos como os da indiferença. E são sobretudo estes que eternizam esses lugares do nosso pecado global.

Friday, September 16, 2005

aqui ao pé

Daqui a menos de um mês elegeremos os nossos representantes nos órgãos do poder local. Em cada freguesia, em cada cidade, joga-se muito mais do que a disputa de vaidades e de protagonismos pessoais. O que está em jogo é a justeza do modelo de desenvolvimento que estamos a pôr em prática. Termos cidades mais justas, termos bairros mais nossos, termos, enfim, um país mais ordenado e mais apetecível, é algo que passa pela expressão da vontade de cada um nas próximas eleições. É este o tempo em que também os cristãos têm que clarificar o que quer dizer, para eles, a palavra comunidade.

Wednesday, September 14, 2005

küng

Fazem-se acordos de paz, acordam-se cessar-fogos, pára a guerra e vem todo o cerimonial de eleições, de constituições e de partilhas de poder. Mas, tragicamente, fica muitas vezes por fazer o essencial: a reconciliação dos grupos desavindos e a construção de uma paz cultural profunda. Precisamos cada vez mais de colocar no centro da nossa atenção os desafios do multiculturalismo e os caminhos do diálogo intercultural. O ecumenismo é uma parte importante desse esforço fundamental. Não haverá paz verdadeira sem uma cultura de paz. E não haverá cultura de paz sem diálogo e abertura inter-religiosa.

Monday, September 12, 2005

dívidas morais

Os níveis de endividamento das famílias portuguesas estão a aumentar. Antes de ser um problema económico ou político, é um problema moral. Recorrer ao crédito para comprar um carro ou uma casa, para lançar um negócio ou adquirir um equipamento não tem nada de mal. Mas há em Portugal um problema moral de endividamento: o de tanta gente que contrai empréstimos para atingir patamares de consumo que o seu rendimento não permite. Essa tentação tem a alimentá-la poderes económicos fortes e sem critério, que nos segredam ao ouvido: “basta quereres e tudo terás, se me adorares…”

Friday, September 09, 2005

realismo

Foi Brecht que disse que “não precisamos de ver as coisas reais, precisamos de ver as coisas na realidade”. Somos constantemente advertidos de que temos que ver as coisas como elas são. Que não podemos comportar-nos como se vivêssemos no mundo das coisas perfeitas. Mas, se virmos bem, com a atenção que só o coração possibilita, as “coisas como elas são” fazem parte de uma realidade injusta e francamente desumana. Precisamos de ver as coisas na realidade. E de transformar a realidade em que essas coisas estão. Para que tudo, em conjunto, seja bom.

Wednesday, September 07, 2005

políticas da alma

De repente, o ganhar-se a alma ou o perdê-la tornou-se tema político. Houve quem lembrasse que a quebra dos afectos faz perder a alma. E fez bem. Isso enobrece a política porque a retira do campo frio da estratégia e lhe devolve o calor das relações. O corpo e a alma não são verso e reverso opostos da nossa condição. E se a política trata dos corpos lutando pelo seu bem estar, nada será se não cuidar das almas inscrevendo cada passo que se dá numa humanidade mais densa. Diz o povo que “os olhos são o espelho da alma”. Precisamos de uma política que veja a vida com os olhos da alma.

Monday, September 05, 2005

bourbon street

Nova Orleães é agora a expressão maior da nossa miopia colectiva. Não, não foram os homens que fabricaram o furacão. Mas sim, foram os homens que criaram as condições para que os furacões sejam cada vez mais destruidores, para que as cheias sejam cada dia mais avassaladoras, para que os fogos sejam cada vez mais devoradores. Cegos, os que mandam reduzem tudo ao controle do banditismo e à imposição da ordem pública. Como estão treinados a fazer longe de casa. Mas, por uma vez, os milhões de desabrigados e sem horizontes de reconstrução da vida pertencem ao mundo rico. Talvez isso, ironicamente, nos acorde mais depressa para a nossa tremenda responsabilidade colectiva.

Friday, September 02, 2005

crude reality

Não há semana em que o preço do barril de crude não bata um novo record. Há explicações para todos os gostos, desde as consequências mais perversas da guerra no Iraque à conversão da China a um modelo de desenvolvimento com alto consumo energético. Pelo meio, soam os alarmes de extinção das reservas no espaço de poucas décadas. Já não há margem para fingir que é mentira. Assobiar para o ar e esperar que a tormenta passe é pura irresponsabilidade. E supor que a técnica tratará de tudo não o é menos. É de mudar de vida que se trata. De mudar os carris ao comboio do desenvolvimento e de o pôr nos trilhos de mais respeito pela Criação.