Saturday, July 31, 2004

days of future passed

Para muitos, as férias estão aí a chegar. São dias estranhos, em que o descanso tem primazia sobre o trabalho, em que a disponibilidade tem primazia sobre o interesse próprio, em que a contemplação tem primazia sobre a utilidade. São dias de Deus, por isso.

Wednesday, July 28, 2004

fé climatizada

Ano após ano, vêm notícias de verões atípicos, com frios súbitos, tempestades inesperadas, ondas de calor inéditas. E, no entanto, ano após ano, deixamos por alterar aquilo que todos sabemos que transforma em regra o que deveria ser excepção. Que a tragédia anunciada se torne em fatalidade assumida diz bem da distância que vai entre a palavra conversão e a sua prática nas nossas vidas. Talvez não nos demos conta de que dia após dia, ano após ano, essa nossa indiferença instalada nos desqualifica como crentes. A fé sem obras é estéril. E as mudanças climáticas são um dos rostos da esterilidade da nossa fé.

Monday, July 26, 2004

pecado mortal

Em Darfur, no sul do Sudão, morrem milhares de pessoas às mãos violentas de bandos armados. Há segregação racial primária e as violações dos direitos humanos básicos são flagrantes e em larguíssima escala. Mas o silêncio abateu-se sobre Darfur. Não há cobertura da CNN, não há petróleo nem diamantes, não há corredores geopoliticamente estratégicos. Por isso, não há compaixão humanitária desta vez. Em Darfur morre-se no esquecimento e na lonjura. Darfur é nome do nosso pecado.

Saturday, July 24, 2004

festivais de vida

Vilar de Mouros, Zambujeira do Mar, Meco, Paredes de Coura são lugares de culto dos verões em Portugal. Liturgias de afecto e de massificação, os festivais de verão passaram a ser grandes momentos de celebração da vida em abundância, tal como a entendem, de modo tão genuíno quanto equívoco, as gerações mais novas. Por isso, os cristãos não devem olhar estes eventos como se eles fossem encarnação do mal. Não o são. Porque é a vida que passa por lá, ora intensa ora distraída. Mas a vida verdadeira é isso mesmo.

Wednesday, July 21, 2004

as contas da vida

Há alguns meses atrás, Portugal assumiu, ao mais alto nível, o compromisso de ajudar a criar um fundo mundial para combate à SIDA. Mandela, Sampaio e outros disseram ao mundo que bastaria cada Estado afectar 0.7% do seu rendimento anual a esse fundo para que o mundo progredisse decididamente na luta contra a maior pandemia do nosso tempo. Passado quase um ano, Portugal não honrou esse compromisso. Talvez não haja multas nem outras sanções. Afinal de contas, é só a morte de muitos milhares de pessoas contaminadas que está em jogo, não o cumprimento da contenção do défice ou coisas sublimes como essa. Mas, haja ou não sanções jurídicas, a condenação moral é clara e muito frontal. Também aqui os cristãos deviam ter uma palavra corajosa e lúcida de denúncia pública. Ou, também para eles, o equilíbrio das contas públicas é realmente mais importante que o direito à vida?

Tuesday, July 20, 2004

esperar, como?

Este é sem dúvida um tempo de expectativas regressivas. Quer dizer, quando olhamos para além do que está, para o futuro, aparecem-nos invariavelmente horizontes mais e mais sombrios. O futuro deixou de ser o lugar de projecção da esperança e passou a ser o foco de antecipação das nossas ansiedades. Alguns dirão que é pessimismo ou mesmo má vontade. Mas se o ambiente não pára de se degradar, se o emprego se precariza, se a segurança social se esfuma, não é o pessimismo que nos leva a temer o futuro. Ter esperança não é negar a realidade com base num optimismo pateta. Ter esperança é confiar que somos capazes de nos mudar e de mudar, nessa mudança, tudo o que pinta o futuro com as cores frias do mal.

Saturday, July 17, 2004

na hora da nossa morte

Tornou-se uma banalidade dizer que “estamos mais pobres” quando morre alguém que marcou a nossa vida colectiva. Mas é muito mais do que uma banalidade. É a expressão de que o nosso melhor património são as palavras e os gestos dos outros. Que a nossa vida só se enriquece se os outros a habitarem. Que nós somos, sempre, ecos de muitos outros. A morte do outro é um pedaço da nossa morte.

Wednesday, July 14, 2004

os nós e os laços

Cada um era nó de redes diferentes. Mas Sousa Franco, Sophia de Mello Breyner e Maria de Lourdes Pintasilgo fizeram os três os laços de que se teceu o colectivo que, em Portugal, encarnou o tempo do Concílio Vaticano II. É também por isso que este vazio é tão grande: não são só três referências fortes das nossas memórias que desaparecem. É um tempo, um jeito entusiasmado e arrojado de desenhar o céu na terra, uma exigência de mistura de sonho, rigor e poesia, como segredo da decência, que vimos agora partir. Para os cristãos, este luto só pode ter o sabor do desafio.

Tuesday, July 13, 2004

mudar a vida

Dessa ausência estúpida que é a morte, Maria de Lourdes Pintasilgo continua a interpelar-nos, como sempre. Ela, como Sophia, nunca quis menos do que “um país liberto, uma vida limpa, um tempo justo”. Quis mudar a vida e não apenas mudar de vida. Quis mostrar que a estrada para o Reino é o caminho de cá para cá. Não havemos de esquecer o seu legado de entusiasmo exigente e de arrojo carinhoso como sínteses, tantas vezes incompreensíveis, da fé e da cidadania. Precisamos agora de um minuto de recolhimento. E de muitos mais de busca sem limites.

Friday, July 09, 2004

traduções

No campeonato das palavras difíceis de traduzir, a portuguesa ´saudade´ocupa o sexto lugar. Só nós, portugueses, sabemos com precisão a densidade humana que essa palavra transporta. Reduzir a diversidade sempre foi uma tentação fácil. Difícil mesmo é aceitá-la e, com ela, a necessidade de encontrar traduções que tornem inteligíveis aos outros a nossa especificidade e que nos permitam entender, sem violentar, a singularidade dos outros. Gritar a fé não é difícil, difícil mesmo é traduzi-la para quem não sabe o que ela é…

Thursday, July 08, 2004

palavras e pó

“Nunca mais servirei senhor que possa morrer”. Sophia escreveu estas palavas de ouro no ano em que eu nasci. Escutei-as, ditas de outras formas, muitas vezes, ao longo da minha vida. Guiei-me por elas. E vi-as denegridas, muitas outras vezes, pelos poderes pequeninos que se julgam dominadores das consciências. Sei que os versos de Sophia são declamados todos os dias lá naquele reino para onde vamos. O resto é pó.

Monday, July 05, 2004

mata-mata

Inebriados pelas vitórias ou deprimidos pelas derrotas, vamos aceitando uma visão do mundo que o transforma num campo de competição final: ou matas ou és morto, ou ganhas ou és lixo. Este é, por isso, o tempo certo para dizer, contra todos os ventos dominantes, que a margem é um lugar de interpelação. Que a educação para o insucesso é uma prioridade moral. Que a força de uma sociedade se vê muito mais no carinho que dedica aos seus perdedores do que na glorificação eufórica dos seus vencedores.

Friday, July 02, 2004

janelas abertas

Houve cenas tristes e indignas. Morreu gente. Mas haja também atenção para as imagens boas que o Euro2004 nos deixa. Que em tempo de guerra preventiva haja adeptos da selecção derrotada que desejam o melhor aos que os acabaram de vencer é um sinal de esperança. Que em tempo de mata-ou-morre haja preocupação genuína com o adversário que caíu lesionado em campo é um ponto de luz. Que em tempo de vedetismo a todo o preço haja estrelas que se abeiram dos deserdados da sorte para os abraçar, ainda que só por um minuto, é uma janela aberta. Haja quem pegue nestes momentos e os mostre como interpelações que ficam.