Wednesday, July 27, 2005

os batuques

Agora ouvem-se os conselheiros a anunciar que o seu senhor está disponível para ir à luta. As claques começam a agitar-se e a preparar as palavras de apoio. O cenário começa a ser claro para os espectadores. Porque de espectadores se tratará, ficará por discutir como transformar a força imensa da massa que olha, passiva, em jorro de novidade e de frescura. Tínhamos que ser capazes de fazer dos grandes momentos políticos mobilizações para saltos na vida da comunidade. Estamos a perder oportunidades demais. E a desmobilizar cada vez mais gente. Onde estão os profetas?

Friday, July 22, 2005

pecados mortais

Uma semana apenas após a reunião dos líderes dos oito países mais ricos do mundo, ficou a saber-se que o anúncio do perdão integral da dívida de dezena e meia dos países mais pobres era afinal fantasioso. Que afinal se perdoa apenas a dívida de que são credores os próprios Estados, quando o dinheiro que sufoca e queima é devido a privados. Que afinal, mesmo o perdão efectivo, há-de ser confirmado pelo FMI, depois de certificado que não se criará um grave precedente para a sacrossanta disciplina financeira internacional. João Paulo II falou duramente das estruturas de pecado do mundo contemporâneo. A dívida dos países mais pobres e a gigantesca hipocrisia que ela move são pecados sérios. São, literalmente, pecados mortais.

Wednesday, July 20, 2005

mostrar

Conta Eduardo Galeano que na selva amazónica equatoriana, uma família de índios suhar se reuniu para chorar a avó ainda moribunda. E quando um estranho lhes perguntou por que choravam se ela ainda estava viva, responderam: “é para que saiba que gostamos muito dela”. Somos gente habituada aos consensos glorificadores depois da morte. Assim soubéssemos dizer aos outros que nos fazem falta durante a vida.

Monday, July 18, 2005

a produção da morte

Não vale a pena citar números, porque eles são fugidios. E não é a expressão dos números que dá força ao facto de, todos os anos, morrerem muito mais pessoas vítimas de armas ligeiras do que em guerras. O que dá força a essa realidade é a sua aceitação social, a resignação com que se aceita este flagelo. É urgente agitar este marasmo assassino. Denunciar que há indústrias que, a coberto da legalidade e do são funcionamento do mercado, produzem morte. Contra a espiral de violência que tende a instalar-se nos nossos perímetros urbanos, combater a proliferação de armas ligeiras é um dever de cidadania de todos. E um imperativo de consciência para quem crê no dom da vida em abundância.

Saturday, July 16, 2005

a insustentável frieza do que acontece

Perdoa-nos, Pai, porque continuamos a emocionar-nos muito mais com a morte do que com a vida. Sempre que a irmã morte nos visita deixa-nos arrasados, com um terrível sentimento de perda e de incredulidade. Estranhamente, para quem se quer crente, não somos capazes de perceber outros momentos – o regresso de alguém que andou longe, o empenhamento denso e exigente de tantos de nós na política, na escola, na profissão, no associativismo, o recomeço de um caminho de dignidade que se tinha destruído, a entrega polémica e teimosa pelo bem comum – como sinais fascinantes de uma vida que se nos dá com surpresa e admiração e que compensa a dor com a alegria e a perda com a noção de construção permanente. Por isso, desculpa Pai.

Wednesday, July 13, 2005

manobras de diversão

Quem matou gente simples e anónima no metropolitano de Londres condenou aí à morte muitos milhares de africanos. Quem o fez, sabia o que fazia. Sabia que tirando a pressão das opiniões públicas sobre os oito líderes mais poderosos do mundo, fazendo-as concentrar no terror, as possibilidades de um compromisso forte para com o futuro de África se reduziriam a muito pouco. As dezenas de mortos de Londres ficam como expressão brutal de um ódio fundamentalismo e cego. Os milhares de mortos que se vão continuar a suceder em África ficam como desafio à mudança do mundo, em que a vida e o desenvolvimento valham mais que os lucros dos diamantes ou das esmeraldas.

Monday, July 11, 2005

a seta e o arco

Se for certa a imagem da vida como uma seta lançada de um arco, a vida de Maria de Lurdes Pintasilgo recolhe todo o vigor e sentido dessa imagem. Um percurso muito intenso, cheio de força, que rasgou o ar com um silvo que tanto soou a poema, como a profecia como a denúncia cristalina de mulher assumida. Maria de Lurdes nunca escondeu que o arco que projectou a sua vida foi o da fé cristã. Há um ano, a seta parou. Quem acompanhou, empolgado/a, a sua trajectória singular, sabe que o alvo da justiça e da dignidade, em que ela acertou em cheio, continua a desafiar outras setas, vindas de muitos arcos.

Friday, July 08, 2005

auto-análise

Tenho amigos que ouvem estes apontamentos. Há os que gostam do tom meio poético. Há os outros que comentam que parecem “coisas de padre”. Eu acho que ambos têm razão. Pensar a vida, vê-la com os olhos de um crente, colher as interpelações das palavras e dos gestos à nossa volta, falar como cristão sem debitar preceitos e regras é algo que é primo da poesia. Fazer tudo isto como exercício quotidiano de revisão de vida e dizê-lo alto, sem vergonha, insinuando a singeleza do Evangelho no horizonte é talvez o melhor que um padre nos pode dar neste tempo. Eu não sou padre nem poeta. Mas nem por isso deixo de me encantar com a vida e de o propor aos outros.

Wednesday, July 06, 2005

vida súbita

As notícias brutais, com rosto concreto (o nosso próprio, o de um familiar ou de um amigo), fazem parar a nossa história. Invariavelmente, reagimos a elas com indignação: isto não podia acontecer – os resultados assustadores do nosso último exame clínico, o acidente grave do colega, a morte do filho mais novo do vizinho, o desemprego inesperado da sobrinha. O fluir da vida, certinha, sem sobressaltos, planificada nas páginas das agendas, leva-nos, a pairar, de um dia para o outro. E, de repente, há como que um violento trambolhão que nos magoa. Não suportamos ser despertados para a fragilidade da nossa condição. Revoltados, chamamos a isso injustiça. Mas, lá no fundo, não é senão humanidade.

Monday, July 04, 2005

isabel

Terá tido uma vida normal de princesa do seu tempo. Era de Aragão e veio casar a Portugal por conveniência das respectivas casas reais. O marido amava muitas outras mulheres e disso fazia gala. Isabel podia ter-se refugiado no tédio da corte ou nos jogos senhoris da moda de então. Mas não. Dedicou-se totalmente aos pobres. Fez deles a sua causa. Não para aparecer de vez em quando nas crónicas sociais como senhora de bem, mas por convicção e militância. Talvez tenha mesmo roubado os cofres do reino para lhes dar de comer. Afinal, nada que não se transformasse em rosas no momento do confronto com o poder bruto. Era rainha e é santa. Sem contradições.

Friday, July 01, 2005

época de recurso

Sempre que começa um ano lectivo, repetem-se os discursos de renovação da esperança num país mais preparado para os embates do futuro. Mas agora que as portas das salas de aula se voltaram a fechar e que o stress dos exames passou a ocupar todo o cenário, é o tempo certo para perguntarmos se se cumpriu a vontade de crescer. Passado mais um ano, aprendemos a viver melhor uns com os outros, estamos mais disponíveis para aprender a aprender? Ou respondemos honestamente agora ou não valerá de nada voltar a ladainha da esperança lá para Setembro.