Friday, February 29, 2008

católicos, apostólicos, romanos

A linguagem é um dos alçapões mais fundos da presença pública da igreja. É também nela que se materializa a ortodoxia fechada à mudança. E, por isso, os guardiões da ortodoxia são zelosos guardiões da linguagem dogmática e unicitária. No oriente como em África, e sempre que a especificidade das construções culturais o exige, a cúria romana recusa, por princípio, adaptar a linguagem do cerimonial litúrgico e dar-lhe especificidade. A recuperação do Latim não é uma questão estética, mas uma expressão de poder. Mais romana que católica, a cúria. E muito, mas mesmo muito pouco apostólica.

Wednesday, February 27, 2008

personalismo après la lettre

Não pode haver divórcio entre as políticas públicas e a dimensão pessoal das politicas. Gandhi dizia que a política é um gesto amoroso para com o povo. Nada menos que isso. É essa contaminação das políticas pelo cuidado que constitui o grande desafio da credibilização dos sistemas políticos contemporâneos. Respira-se por aí uma exigência de que rapidamente se leve a sério um novo slogan: "são as pessoas, estúpido!". É de personalizar as políticas que se trata. Desde o momento da concepção, como diria algúem a outro propósito.

Monday, February 25, 2008

(im)potência

O poder formal pode cada vez menos. Não é defeito transitório, algo que passará com novas caras e com mais coragem de quem manda. É que quem manda está longe, num nevoeiro indecifrável e quem julgamos que manda é afinal mandado. "É o sistema", diz o discurso desportivo. E é. Só que, ao contrário do que dizem os treinadores depois de derrotados, "a atitude" não chega quando saltamos dos estádios para as sociedades. Discernir as novas alavancas do poder é essencial para mudarmos - radicalmente e não apenas na superfície das coisas - a realidade que nos cerca.

Friday, February 22, 2008

há mais vida...

Há doutrina pobre a mais e vida concreta a menos no centro das nossas comunidades cristãs. À carência de vida partilhada - com as suas "tristezas e angústias, alegrias e esperanças" próprias - substitui-se vezes demais o catálogo das regras administrativas sobre vidas abstractas. Não, não é doutrina, porque essa é desafiante. É apenas uma menorização das vidas, condenadas a ser ecos passivos e domesticados das regrazinhas.

Wednesday, February 20, 2008

variedades

"Nas diferentes situações concretas, e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes". Eis a apologia certa e serena do pluralismo políticos dos cristãos. Eis aquilo que causa tanto desconforto aos guardiães da unicidade, tanto internos como externos à Igreja. Paulo VI, em 1971, disse a ambos que esperassem a diferença.

Monday, February 18, 2008

o quentinho

"Como é bom estarmos aqui!...". Pedro, homem de encantadoras fraquezas, deu voz à experiência de crer estar mais perto de Deus. Jesus desarmou-o, para não variar... A desinstalação exigida na narrativa da transfiguração, ontem lida, é uma exigência feita à Igreja. A TODAS as formas de a Igreja se organizar. A pedagogia da desinstalação devia ocupar lugar prioritário na catequese quotidiana. Ocupa?

Friday, February 15, 2008

no, we can't

O à vontade com que a maioria do discurso católico assume que a Igreja não é uma democracia é duplamente negativo. Ad intra, primeiro: esse é o discurso que legitima a concentração do poder na Igreja e o seu efectivo défice de colegialidade. Ad extra, depois: que autoridade tem quem reclama a condição de exterior a uma condição para se dirigir em tons regulatórios a essa mesma condição?

Wednesday, February 13, 2008

o micro e o macro

Claro que cada um/a de nós tem poder. Na profissão, na família, em todos os colectivos em que se move. Mas os exercícios individuais de poder não são incomensuráveis com o perfil do poder em escala de política pública. Por isso, remeter para os desempenhos individuais a alternativa ao apodrecimento da política de dimensão comunitária - tão normal em meios católicos - tem algo de capitulação antecipada. E de perverso: atira para os frágeis ombros de cada um/a um peso claramente demasiado.

Monday, February 11, 2008

11 de fevereiro

Uma Igreja que faz da condenação do mundo moderno o seu discurso do dia-a-dia não dá espaço a que se concretize uma efectiva autonomia das realidades terrestres. Nos direitos humanos só consegue ver revolta contra Deus como senhor do destino. No primado da razão só consegue ver o pecado da soberba. Numa Igreja assim, a consciência de cada um(a) não é o lugar mais íntimo e indisfarçável de Deus. Uma Igreja assim usa as regras sociais e os códigos penais para impor o absolutismo da sua verdade. Tem razão o Papa: é preciso mudá-la para a pôr ao ritmo do Vaticano II...

Friday, February 08, 2008

antónio vieira

Mandava a lei e o bom catolicismo que os índios não tinham alma podiam por isso ser escravos. Mandava a boa ordem e a conveniência social que nada disso fosse posto em causa. Mandou a liberdade e o primado da consciência que António Vieira dissesse um repetido não a todas essas patranhas. Quatrocentos anos depois, a lei, o bom catolicismo, a boa ordem e a conveniência social impõem outros princípios e outros silêncios. A liberdade e o primado da consciência, esses, mandam que nunca se afastem as vozes nem se abatam os silêncios sobre a dignidade irreprimível de cada pessoa.

Wednesday, February 06, 2008

riso e cinzas

Thomas Hobbes, inspirador de todas as políticas de poder musculado, criticou o riso, vendo nele "uma ameaça óbvia à paz". Os homens não deviam desperdiçar energias nessas fraquezas. Por seu turno, Spinoza, filósofo marrano, proclamava que quanto maior é a alegria que nos invade, maior é a perfeição a que aspiramos. O canónico Hobbes ou o marginal Spinoza - quem inspira a Quaresma cristã no nosso tempo?

Monday, February 04, 2008

superfluous people

Foi sempre diante da realidade de gente condenada a ser supérflua que as lutas pelos direitos humanos se desenvolveram. E foi também diante do espezinhar da dignidade dos operários que a Igreja acordou para a Doutrina Social. Hoje, essa gente supérflua tem, nas nossas sociedades de conforto, um novo nome: são os imigrantes. Aos defensores dos direitos humanos não pode importar se esses imigrantes estão ou não documentados. À Igreja muito menos. E de uns e dos outros espera-se a mesma coragem cívica e o mesmo discernimento que tiveram os autores da Declaração Universal de 1948 quando perceberam que era urgente romper a ganga da lei existente e olhar os indefesos à luz de considerações elementares de humanidade.