Friday, January 30, 2004

luz

Contaram-me de uma gravação a canivete na parede húmida de uma prisão numa ilha perdida. Dizia apenas “Resistir!”. Mesmo sem nenhum horizonte de futuro, mesmo quando o fim se apresenta definitivo, mesmo quando a História se fecha, a esperança acende a última luz. E guarda-a, teimosa e estupidamente acesa. Quem olha a Terra a partir do espaço não é a grande muralha da China que vê, mas os milhões de luzes de esperança que resistem.

Wednesday, January 28, 2004

o preço certo

Há uma notória mentalidade comercial na nossa relação com Deus. As transacções e os respectivos preços comandam a nossa fidelidade: pedimos, aceitamos uma fasquia e obtemos resposta. Mas a voz do povo simples deixa perceber um lado inesperado desta relação viciada: “obter uma graça”, diz-se. É a gratuidade que sobressai, é o que Deus - ou os santos e santas, ou mesmo as pessoas anónimas – nos dão mesmo quando nós não merecermos nada. É esse excesso da dádiva e do cuidado que torna os crentes, na sua imensa fragilidade, amigos de Deus e não clientes de Deus.

Monday, January 26, 2004

perfume de mulher

Pode parecer provocação fácil, mas é muito mais sério do que isso. Constatar que “Jesus teve muitos inimigos, mas não teve inimigas” remete-nos para uma relação pouco estudada, entre o homem de Nazaré e as mulheres que o conheceram. Sabemo-lo rodeado de homens, pescadores, rudes, evidenciando todas as debilidades tremendas do universo masculino. Mas também sabemos que muitos dos episódios mais radicais da sua trajectória pública ficaram marcados pela presença de mulheres: a relação singular com sua mãe, o tratamento insinuante que lhe deu Marta, o tocante perdão à mulher adúltera, o protagonismo de mulheres na visita ao túmulo e na surpresa diante do seu vazio. Jesus pertence definitivamente ao lado feminino da História. Que bom seria que fosse essa a razão de as nossas igrejas se encherem de mulheres…

Friday, January 23, 2004

sincero arrependimento

Os bispos portugueses alertaram-nos para a existência de pecados sociais graves entre nós. Pergunto-me se aos pecados sociais correspondem formas de penitência social e de arrependimento social. Talvez sim. O compromisso com o associativismo é uma expressão de arrependimento do pecado do individualismo. Uma reforma fiscal justa será um gesto de arrependimento da desarmonia da fiscalidade em Portugal. As políticas de rendimento familiar de dignidade concretizam o arrependimento da sociedade pelo pecado da exclusão gerada pela pobreza. São gestos sem rosto? São, mas só são possíveis se arrancarem do coração dos homens e mulheres concretos. E se for assim, será sincero o arrependimento.

Wednesday, January 21, 2004

as portas e os cânones

Cada tempo tem os seus pecados. O que foi ultrajante há séculos, ou mesmo décadas, passou a ser tolerado e o que era tido socialmente como bom é hoje condenado. Cada um de nós vive mergulhado no seu tempo e, por isso, dá um valor absoluto a realidades que a História se encarrega de tornar relativas. Jesus nunca quis saber das tabelas de pecados do seu tempo. Com a mulher adúltera ou com o cobrador de impostos, ele mostrou, duma vez por todas, que só o acolhimento e o perdão rompem os bloqueios da História. E que os cânones, todos os cânones, fecham portas ao futuro.

Monday, January 19, 2004

pequenos tudos

Alguém me ensinou há dias, desdizendo a canção do Sérgio Godinho, que “a vida é feita de pequenos tudos”. É verdade. Os pequenos gestos, os encontros fortuitos, os projectos pessoais que só fazem sentido na vida de cada um, as esperanças e desesperanças que cada coração alimenta, esses pequenos fragmentos, insignificantes aos olhos dos grandes colectivos, são tudo, em cada momento, na nossa singularidade. E são esses tudos, e a intensidade com que os vivemos, que nos fazem seres únicos e irrepetíveis, muito mais do que o nosso código genético ou a nossa impressão digital.

Friday, January 16, 2004

nós

Que é feito das associações culturais, dos cine-clubes, dos grupos de reflexão? Quantas reuniões da associação de pais ou do núcleo partidário têm quórum? Onde ficaram as comissões de moradores, os núcleos de vizinhos ou … Que fizemos dos nossos projectos colectivos? Que fizemos para que o "nós" tenha passado a ser, sempre e só, um somatório frio de "eus"?

Wednesday, January 14, 2004

liberdade de circulação

Nas nossas sociedades, em que a mobilidade se tornou mandamento sacrossanto, há cada vez mais gente que vive longe das suas raízes e dos seus afectos. Vão à procura da sobrevivência, da qualificação, do sonho. Partem, abafam a memória para ela não doer demais e entram em novos mundos, perturbadores e agressivos. Vivem na estranheza da diferença e na secura das relações. E nós, aqueles que ficamos no nosso tranquilo sossego, nem nos damos conta de como à nossa volta há tanta gente a fazer das fraquezas forças e numa procura desesperada de sentido e de ternura.

Monday, January 12, 2004

comunhão de adquiridos

Foi muito importante que templos católicos se abrissem aos cristãos ortodoxos para a celebração da sua festa do Natal. Foi um sinal de revigorante frescura. Sou do tempo em que quem não fosse católico era olhado com suspeição e ostracizado dos círculos das “pessoas de bem”. É fundamental tomarmos consciência de que, neste mesmo país em que hoje os ritos orientais são acolhidos em igrejas secularmente católicas, há menos de 40 anos os próprios protestantes eram rotulados de gente estranha e indesejável. Que hoje o diálogo inter-religioso tenha expressões de partilha genuína é, portanto, um ganho para todos, mesmo para os não crentes.

Friday, January 09, 2004

que fazer?

Agora é o tempo dos projectos. Agora é, queiramos ou não, o tempo de nos perguntarmos “o que é que queremos fazer da nossa vida nos dias que aí vêm?”. Mesmo para os que fazem do quotidiano um exercício de navegação à vista, mesmo para os que acham que nada mudou de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, mesmo para esses o desafio de um ano efectivamente novo está aí. Os cristãos são os primeiros destinatários desta obrigação de pensar a novidade e de soltar amarras da saudade doentia. Ou não fossem discípulos de quem, sem limites de tempo ou de espaço, veio fazer novas todas as coisas.

Wednesday, January 07, 2004

o valor da morte

Nos balanços de fim do ano, os jornais mostram-nos invariavelmente a galeria dos notáveis que desapareceram. São políticos, actores, cientistas, homens e mulheres que acrescentaram algo à nossa humanidade. Todos os anos fico com a estranha sensação de perda irreparável e de que, cruelmente, só nos damos conta dos nossos melhores depois de eles desaparecerem. A morte tem esse sortilégio de nos dar a valoração definitiva do que foi a nossa vida.

Monday, January 05, 2004

as prendas

Os Reis que foram visitar o menino levaram-lhe prendas raras. É grande a tentação de transpor esse gesto para o nosso tempo. Mas não é nada seguro que as prendas sejam as melhores e adequadas ao menino. Não sei, nem ninguém sabe, se uma lei com suposta inspiração nos valores cristãos é melhor ou pior, em si mesma, do que uma decisão laica e indiferente aos mandamentos da lei de Deus. Mas sei, tenho a certeza, de que aquele menino gosta que os não crentes lhe dêem gritos de revolta contra a indignidade e se entristece sempre que os bons cristãos lhe dão leis que oprimem ou práticas que amesquinham.

Thursday, January 01, 2004

o cúmplice objectivo

“A paz e o Direito Internacional estão intimamente ligados entre si: o direito favorece a paz”. Nestes tempos em que a guerra mais crua aparece disfarçada por expressões como “operação de estabilização da ordem” ou “restabelecimento da normalidade”, estas palavras de João Paulo II, proclamadas hoje, dia mundial da paz, soam a provocação. E são-no. Assumidamente. O Papa não quer menos que um direito universal da paz e uma substituição do direito da força pela aceitação da força do direito. E vai mais longe ainda: defende que “a luta contra o terrorismo não pode exaurir-se meramente em operações repressivas e punitivas” e que “é essencial que o recurso necessário à força seja acompanhado por uma análise corajosa e lúcida das motivações subjacentes aos ataques terroristas”. O ano começa sob o signo do desafio radical para os cristãos: rejeitarem a solução precária da ordem armada e abraçarem o combate político e pedagógico. Este Papa deixa os cristãos em maus lençóis. Abençoado seja por isso.