Wednesday, August 30, 2006

comum

Uma prestigiada socióloga ousou dizer há dias, contra a corrente, que “um problema grave que se põe em Portugal é que um metro quadrado de espaço conservado ao pé de um metro quadrado de espaço urbanizável vale uns tostões, numa desproporção de um para mil”. Respondia a uma pergunta sobre a conciliação entre a propriedade e o bem comum. E, com aquela resposta condenada por todos os cânones individualistas e liberais que nos regem, trouxe à tôna um pilar esquecido da doutrina social da igreja: a propriedade privada não é um bem supremo, deve estar ordenada ao bem comum.

Monday, August 28, 2006

no fio da navalha

A guerra fria acabou mas a guerra fria do pensamento, essa está aí em plena pujança. É o mundo pintado a preto e branco, em que "os nossos" são combatidos "pelo mal", numa conspiração imensa de todos os impuros. Este é um tempo de denúncia impiedosa de silêncios, de recuperação de memórias adormecidas, de acusação de falhas, de suspeita de infidelidades. Este é um tempo muito difícil e de profunda exigência para quem, a partir da esperança, quer fazer triunfar a paz.

Friday, August 25, 2006

companhia de seguros

Em poucos anos deixámos de pensar na segurança como defesa do Estado contra os países inimigos para a pensarmos antes como garantia das condições essenciais de dignidade das pessoas. Ora, a segurança humana é muito mais do que um conceito teórico, é uma exigência moral. Quando os cristãos assumirem isto por inteiro, talvez os orçamentos de estado, as políticas externas e as campanhas eleitorais se transformem. Oxalá.

Wednesday, August 23, 2006

sabemos

Para a comunidade científica portuguesa, este é o tempo para aprontar projectos de investigação para os dois anos que aí vêm. É por isso o tempo certo para questionarmos os horizontes do nosso saber. Há modas de conhecimento bem financiadas que deixam na sombra muita vida sofrida e muitos pecados estruturais que se impõe conhecer. Essa sombra é uma estratégia deliberada de ignorância, para que não se ponha em causa o modelo de felicidade triunfante. Há quem pense que a fé não em nada a ver com isto. Porquê?

Monday, August 21, 2006

a herança

Agora que se assinalam os 60 anos de tanta gente que marcou a mudança social a seguir à II Guerra Mundial, vale a pena perguntar que impacto teve essa geração na Igreja, ou melhor, no modo de ser crente. Ecumenismo, ligação profunda à vida e às injustiças e esperanças que a atravessam, crítica da incoerência são legados inestimáveis de quem, apesar de tudo, persistiu em experimentar a fé sem vergonha nem ressentimento.

Friday, August 18, 2006

perdão (ii)

Desculpa-nos, Pai, por não querermos perceber que os direitos humanos que importam são os dos outros. Desculpa-nos pelas manobras sucessivas que vamos ensaiando para protelar a nossa conversão ao cuidado e à centralidade do outro na nossa vida. Desculpa-nos pela nossa cumplicidade tranquila com a fome, com a discriminação canonizada, com a caridade selectiva. Desculpa-nos por nos crermos com direito a descansar muito antes do sétimo dia, quando ainda tudo precisa da alma da liberdade e do sopro da justiça.

Wednesday, August 16, 2006

perdão (i)

Desculpa-nos, Pai, pela imagem grandiosa e irrepreensível que o espelho do nosso convencimento projecta de nós. Desculpa esse lugar absoluto que nos damos e a sobranceria com que vemos limites e imperfeições no outro. Desculpa-nos, Pai, pelo nosso fascínio pela tolerância zero de todas as escalas e contextos. Desculpa a naturalidade com que justificamos uma sociedade que não perdoa e por deixarmos que se ache que o perdão é uma falta de coragem.

Monday, August 14, 2006

magnificat

Sem medo de ferir os cânones e as conveniências, foi ela que ousou dizer de um Deus que costumava ser temido: “Manifestou o poder do seu braço; desconcertou os corações dos soberbos; derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos.” O Deus dessa mulher era totalmente novo. E, assim enunciado, ficou novo para todo o sempre.

Friday, August 11, 2006

a vida no campo

Enquanto o comboio não chega, há tampo para um último abraço comovido e prolongado ao amigo mais recente. Nestes dias de campo de férias, descobriu-se a vida e como nela é imprescindível que esteja Francisco de Assis e Luther King, a ecologia e a espiritualidade cristã. A tirania do relógio foi arrasada pelo sentido profundo dos afectos. No campo de férias, foi a vida plena que espreitou. O abraço, o cântico e a mochila guardam essa memória para sempre.

Wednesday, August 09, 2006

ilusionismo

Como se se pudesse mudar de vida só por quinze dias!... Essa é a eterna ilusão das férias e a sua maior armadilha: a de que podemos fazer coexistir em nós uma vida inteira de competição e de ritmo desenfreado com um tempo minúsculo de serenidade, de disponibilidade para os outros e de contemplação da criação. Enquanto não interiorizarmos que é de mudar a vida que precisamos, as férias serão apenas um carregar de baterias para voltar à vida absurda.

Monday, August 07, 2006

lá atrás

Mia Couto fala daqueles, muitos, que estão nas traseiras da vida. A fachada fresca e pintada, com um aspecto acolhedor, não deixa perceber que, nas traseiras, se esconde a degradação, o abandono, a ruína. Quem vê a solidez da fachada nunca dirá que o edifício entrou definitivamente em colapso e que desabará subitamente, como um castelo de cartas. É nas traseiras da vida que são urgentes as obras. Não de manutenção mas de reconstrução das estruturas.

Friday, August 04, 2006

em nome do corpo

Dormir agora o que não dormimos, ter agora o cuidado com a alimentação que não tivemos, fazer agora os exercícios físicos que não fizemos. Nas férias cuidemos das coisas do espírito, pois claro. Mas entendamos o cuidado desse tesouro que é o nosso corpo como uma concretização da exigência permanente de cuidado com a criação.

Wednesday, August 02, 2006

vá para fora cá dentro

Propostas umas atrás das outras: os lugares paradisíacos para férias estão a leilão nos jornais, na internet, nas montras das catedrais do consumo. Ilhas de areia branca e água cristalina, cidades frenéticas, selvas inóspitas – há de tudo e para todos os gostos. Em nenhum catálogo se fala da descoberta de si próprio nem do cuidado dos outros. Porque não vende, é certo. E sobretudo porque não é preciso ir para longe para dar espaço a esses bens sem preço.