Friday, June 30, 2006

força

Foi quando a vida desabou que ele recebeu aquela mensagem. Tensões insuportáveis no trabalho, recusa de financiamento de um bom projecto sem razões plausíveis, sinais de saúde precária – tudo junto a pôr de rastos a sua confiança. Mas a mensagem dizia que, mesmo na escuridão mais funda de um luto brutal, uma mulher recuperara o horizonte da dignidade por que continuara sempre a lutar. Ao lê-la, ele riu-se de si próprio e dos seus problemas. E pensou na palavra força.

Wednesday, June 28, 2006

o teste

Ser crente diante de um desempregado não é fácil. A grandeza das palavras usadas para a fé fica em estilhaços em face da simplicidade fria da negação de trabalho a alguém. A força das razões para ter esperança torna-se em caricatura grosseira perante a perda de sentido para a vida, experimentada por quem é chutado para fora do emprego. Quando o encerramento inexplicável de mais uma fábrica deixa no vazio as vidas de muita gente, só a experiência da ressurreição, da superação de todos os limites, mesmo dos impossíveis, tem densidade para a retoma da confiança.

Monday, June 26, 2006

o que faz falta

Os dias de Timor voltam a ser pesados. A cada hora que passa, testa-se a firmeza de quem crê para além das evidências. Agora, o mais fácil é escolher quem é o mau da fita e culpá-lo pelas dores do povo. O mais difícil é a clarividência da reconciliação profunda, muito mais exigente do que qualquer negócio político de circunstância. Tarda uma voz sonora da Igreja de Timor a convocar ao encontro e à consciência de um comum dever para com o povo sofredor. A cada hora que passa esse silêncio torna-se cada vez mais insuportavelmente ruidoso.

Friday, June 23, 2006

capacity building

Pouco a pouco, Portugal vai despertando para o primado da aprendizagem ao longo da vida e do reconhecimento de competências que se adquiriram fora da escola. Creio que os cristãos têm muito a aprender com este novo espírito. Também para quem crê, a educação teológica e o crescimento na fé ou se fazem ao longo da vida toda ou nos remetemos a uma menoridade intelectual confrangedora. E é quase sempre fora dos muros da Igreja que essa formação se faz. É no mundo, amando-o e mudando-o, que a nossa fé se torna adulta.

Wednesday, June 21, 2006

roteiro

Há muito, muito tempo que os cristãos desafiam a sociedade portuguesa para um roteiro pela inclusão social. Mais: estão lá, onde esse roteiro magoa na carne e na alma. Que poucos tenham consciência disso é o menos grave. Grave mesmo é quando a força desse roteiro se perde porque a inclusão se torna negócio ou coutada de cristãos. E ainda mais grave é que esse roteiro seja ignorado pelos próprios cristãos, para quem a inclusão é uma utopia impossível ou uma escolha política entre outras.

Monday, June 19, 2006

sacramento

O João e a Joana casaram-se. E houve amigos cristãos que dificilmente disfarçaram a crítica por se tratar de um casamento “só pelo civil”. O que os críticos não podem ignorar é a grande interpelação do gesto essencial do João e da Joana: terem a coragem de assumir publicamente um compromisso firme e duradouro de uma vida partilhada e amorosa. O mais fácil teria sido recusar qualquer formalismo e assim fugir a qualquer compromisso. Que o João e a Joana tenham feito questão de incluir no contrato civil que querem viver em comunhão geral de bens – e não apenas na normal comunhão de adquiridos – é um fortíssimo sinal. Muito mais puro e denso do que juramentos no altar em pura pose para a fotografia.

Friday, June 16, 2006

é o direito à vida, estúpido!

Nas contabilidades oficiais das guerras não entram os milhões de vítimas invisíveis. Há os mortos, os feridos e os estorpeados. Mas há sobretudo gente cuja vida fica destroçada para sempre pela perda brutal do companheiro, do irmão ou do filho. É o peso esmagador do luto. É a saúde física e psíquica abaladas em profundidade. É o trabalho que se degrada e as amizades que se desfazem. São as responsabilidades adicionais, às vezes insuportáveis, pelo sustento da família. O direito à vida tem muitos rostos. O das vítimas invisíveis é cruel. Porque ninguém o quer ver.

Wednesday, June 14, 2006

o corpo

Foi enquanto comiam, no primeiro dia da festa dos Ázimos, que Jesus lhes fez saber que aquele pão era o seu corpo. Para os mais de 100 milhões de pessoas que, nos países ricos, vivem abaixo do limiar de pobreza, para os 160 milhões de crianças subnutridas e para os 600 milhões de pessoas dos 48 países menos desenvolvidos a materialidade de Deus é certamente muitas coisas e é pão antes do mais. Quando amanhã nos perguntarem que coisa estranha é essa do corpo de Deus, respondamos com os índices de mortalidade por desnutrição no mundo.

Monday, June 12, 2006

riscos

Vivemos em sociedades de risco. As promessas da ciência podem transformar-se (e transformar-nos) em deuses ou em monstros. A instabilidade tornou-se a regra. Nada nem ninguém tem garantido um caminho tranquilo para o sucesso. Mas, até no risco, há pobres e ricos. O grande risco dos meninos ricos da Europa é a velocidade vertiginosa do seu automóvel ou a contaminação do seu bife. O grande risco dos meninos pobres da América Latina é morrerem sem razão numa troca de tiros entre gangs e polícias.

Friday, June 09, 2006

ingenuidade

É claro que vai ser muito mais do que o sortilégio de uma bola que bate na barra e não entra. É claro que o mundial de futebol é um grande negócio, uma imensa indústria, uma encenação com actores e figurantes que deixa a anos-luz as super-produções mais sofisticadas. Mas eu gosto de acreditar que há uma réstia de paixão genuína em quem joga à bola e em quem grita golo, abraçando o vizinho do lado que nunca conhecera antes. Eu gosto de acreditar que há uma humanidade a descobrir nestes dias que agora começam à volta de uma bola que teimosamente não entra na baliza.

Wednesday, June 07, 2006

impertinentes

Num tempo em que, por cá, se discute a “compressão” que a entrada obrigatória de um certo número de mulheres nas listas partidárias causaria, do outro lado do mar um grupo de investigadores e militantes dos direitos humanos discute o envolvimento de mulheres e meninas em contextos de violência armada. Elas incomodam, visivelmente. Põem em causa a paz dos instalados e descaracterizam a guerra dos poderosos. Bem-aventuradas sejam por isso.

Monday, June 05, 2006

dobro

“O amor é o dobro”. Foi o poema que o João, com 5 anos, escreveu. Assim. Sem mais nada. Não precisava de nem mais uma letra. Porque está lá tudo. O enunciado sem falhas do mistério da gratuidade. O amor é essa coisa desproporcionada, tonta, sem razão. E sem conta. O dobro.

Friday, June 02, 2006

bem feito

No debate acerca do poder da comunicação social, vejo muitos cristãos sedentos de escândalo, muito mais do que de dignidade e de respeito por ela. Da condenação da violência dos filmes televisivos à aceitação da inevitabilidade de a mesma televisão trucidar políticos e outras figuras públicas vai um pequeno passo. E não falta um indisfarçado “é bem feito” para mostrar como está por fazer a conversão dos cristãos à centralidade da pessoa humana. De todas as pessoas humanas.