Friday, March 31, 2006

us and them

Andam cheios de guerra de civilizações os noticiários do mundo. Como em outros momentos de ignorância histórica, a linguagem anda cheia de “eles” e “nós”. São “eles” que nos querem destruir e “nós” que temos o dever de defender a “nossa” civilização. Contra essas construções guerreiras, vale a pena sublinhar que, do lado “deles” como do “nosso” lado”, a diversidade é muito mais forte do que a unicidade. “Nem judeu nem grego, nem senhor nem escravo” – as palavras de S. Paulo soam como um imenso desmentido de um embuste. De uma armadilha para o pensamento e para os olhos.

Wednesday, March 29, 2006

par

Deus criou-nos homem e mulher. Mas há cristãos que se esqueceram disso e que vivem tranquilos com a subalternização das mulheres na sociedade e na Igreja. Há mesmo quem ache que assim é que tem que ser e quem espere, descansadamente, que o tempo se encarregue de tratar do assunto. A palavra paridade devia fazer ecoar, entre os cristãos, o sentido de fidelidade à criação. Na sociedade como na Igreja, a igualíssima dignidade de mulheres e homens continua a ser uma exigência à espera de resposta. Até quando?

Monday, March 27, 2006

ecran

Conhecemos mal o mundo. Vêmo-lo limitado ao nosso quintal. E essa pequenez do nosso olhar e do nosso conhecimento faz-nos absolutizar o pouco que sabemos como se fosse tudo. Há pobres muito mais pobres do que os pobres que os nossos olhos vêem. Há concepções do mundo muito mais diversas do que o nosso conhecimento conhece. Num tempo de acesso tão selectivo à realidade que nos cerca, querer conhecer e saber muito mais do que se nos mostra é um acto de grande atrevimento. Bem-aventurados os que não desistem de ver com atenção e de conhecer com sentido crítico porque nos salvam das verdades oficiais.

Friday, March 24, 2006

perto da revolução

Humor e amor são talvez as duas coisas mais próximas da revolução. Um a destruir as carapaças acumuladas que, à defesa, fomos construindo para desvirtuar a grande provocação da radicalidade essencial. O outro a ser construção infinita, alimentada por uma paciência sem tempo e por uma confiança sem resultado à vista. Não consigo conceber uma fé sem humor e sem amor. Porque não consigo conceber uma fé que não faça da revolução em nós o suporte da revolução no mundo.

Wednesday, March 22, 2006

the smoking gun

A Comissão Nacional Justiça e Paz organizou ontem a quarta sessão da Audição Pública “Por uma sociedade segura e livre de armas”. Desta vez com os olhos e os ouvidos atentos à actuação das grandes organizações internacionais no controle dos movimentos de armas ligeiras. É a mesma cultura de violência, generalizada e omnipresente, que envenena as relações entre Estados como as relações entre as pessoas. Numa escala como na outra, a paz é realmente a mais difícil e heróica das referências. Opô-la à cultura ancestral do reino do macho ou opô-la ao sacrossanto mandamento da livre circulação dos bens – mesmo quando são bens de morte – ou ao sacrossanto imperativo do mercado – mesmo quando é o mercado da desumanidade – é tarefa para gente muito valente e muito lúcida. Gente que não abunda por aí.

Monday, March 20, 2006

pai

São José operário terá tido todas as alegrias, todas as ansiedades e todas as irritações de todos os pais. Não está escrito, mas nem precisava de estar, que terá ido algum dia, de madrugada, para as urgências do Pediátrico mais próximo com um menino Jesus com falta de ar. E alguém há-de ter testemunhado a sua generosidade vaidosa num aumento da mesada do filho depois das boas notas do segundo período. Adivinha-se-lhe um rijo raspanete pela primeira noite em que o menino chegou a desoras do café. Não, o carpinteiro José não foi certamente um pai angélico de um filho angélico. E é por isso que, lembrando-o, celebrámos ontem essa coisa maravilhosamente complicada que é ser pai.

Friday, March 17, 2006

all we are saying...

Faz agora três anos que guerra e Iraque passaram a rimar. Tenha sido em nome do que tenha, a guerra ficou, com o seu cortejo de mortos, de medos, de ódios acumulados. Três anos passados sobre o início daquela guerra, há outras que se anunciam e outras ainda que se dão antecipadamente por justificadas. Este é o tempo de mostrar que estamos dispostos a travar a vertigem fácil da guerra. Como há três anos atrás, vão-nos chamar cobardes ou acusar-nos de cumplicidade com os ditadores e os fanáticos. Paciência. Talvez um dia percebam que o fanatismo da guerra é que é cobarde e que é em nome da vida em abundância para todos, e sobretudo para as vítimas de todas as opressões, que pedimos que dêem uma oportunidade à paz.

Wednesday, March 15, 2006

na prática

A escola da vida é de uma enorme crueldade. Aprende-se depressa que o supremo mandamento é o da competitividade. Prestam-se provas de quebra de solidariedade a cada dia que passa. Há cursos intensivos de impunidade para os envenenadores do planeta e cursos de especialização para misturadores de interesse público com lucro privado. Na escola da vida, o racismo, o machismo e a incultura têm aulas teórico-práticas a tempo inteiro. Quando me dizem que a escola, a outra, está afastada da vida, eu dou graças a Deus.

Monday, March 13, 2006

nunca mais

Em Haia, em Arusha, como antes em Nuremberga, o julgamento de crimes contra a humanidade passou a ser expressão de que há um inaceitável universal. Acredito que somos mais família humana quando julgamos e punimos a negação bárbara da nossa comum humanidade. Mas precisamos de ser cada vez mais exigentes no entendimento da nossa condição humana e dos atentados contra ela. Talvez daqui a alguns anos se considere como crime de lesa-humanidade não só o genocídio mas também a prática de políticas que causam objectivamente miséria e desesperança. Para ser verdadeira, a família humana não pode fingir que não é assim.

Friday, March 10, 2006

a via justa

Num tempo em que se fala e escreve sobre Estados falhados e Estados em colapso para designar os países mais pobres, temos que nos perguntar se não se trata afinal de um sistema internacional falhado, ou mesmo em colapso, aquele que produz Estados assim. Muitos cristãos fizeram da cooperação para o desenvolvimento o lugar da crítica a um assistencialismo de caso a caso sem perspectivas políticas consistentes. Hoje vive-se o avesso dessa crítica e há uma descrença funda na virtualidade das políticas de ajuda ao desenvolvimento. Entretanto, pelo meio, há toda a miséria e todas as estruturas de violência que persistem como desafio às nossas boas consciências e à nossa busca de rigor milimétrico.

Wednesday, March 08, 2006

dia denso

Vivem a angústia permanente do filho que desapareceu talvez para sempre e a dor da filha morta por uma bala perdida no morro. Fazem da memória o eixo da sua dignidade diária. As fotografias dos filhos mortos são o seu grito. Exigem-nos que não esqueçamos. E, com suavidade, estão, simplesmente. Ou desfilam escandalosamente no meio da festa dos outros. Sempre a mostrar as imagens dos filhos mortos. Também por causa delas, este dia é tão denso.

Monday, March 06, 2006

estrelato

O cortejo dos óscares anima sempre a mesma polémica: foi merecido? Que critério se usou? Podem-se comparar desempenhos? Há gente que faz da vida um exercício exuberante, de grande notoriedade, e a quem o óscar do melhor actor principal assentaria como uma luva. Há outros, e são muitos, que dão ao filme da vida uma densidade imensa mas que nunca aparecem nos néons nem nas primeiras páginas, porque ficam por trás das câmaras. É nesse anonimato de quem faz a iluminação da vida dos outros ou de quem projecta o som da voz de quem a não tem que se espera que estejam os cristãos. Sobretudo quando não há óscares para atribuir.

Friday, March 03, 2006

renúncia

Nas sociedades da abundância, a Quaresma é um absurdo. Fazer da renúncia um princípio de vida é algo que faz tremer os alicerces de um sistema que vive da cumulação e da permanente rotação de stocks. Há, por isso, um sentido provocatório nesta chamada ao regresso ao essencial. Cientes do escândalo de uma fé assim, os cristãos ou levam a sério este imperativo da renúncia ou não levam a sério o cristianismo.

Wednesday, March 01, 2006

cinzas

Depois dos dias da carne (“carne vale” = “viva a carne”) as cinzas são como uma espécie de duche frio. Como se fosse socialmente recomendável travar depressa o gozo e a festa. Jesus não foi profeta da austeridade e da tristeza, nem o Reino de Deus está reservado para os que nunca se deixam inebriar pelo dom maravilhoso do corpóreo. As cinzas não podem ser símbolo de uma religião de morte.