Friday, April 29, 2005

it's life, stupid!

Vivemos em sociedades de não praticantes. De tal maneira estranhamos quem pretende ter uma vida coerente com as convicções anunciadas que lhe reservamos o estigma de fundamentalista. E, no entanto, não é de discursos sugestivos mas de vidas interpeladoras que precisamos mais. Nisso mesmo está a força do cristianismo: uma religião do livro e da palavra anuncia que a salvação nos vem pela transformação da vida em cada um dos seus gestos.

Wednesday, April 27, 2005

a vida lá fora

A frase soou estranha. Mas o que aquele miúdo disse na entrevista foi mesmo “passo o dia fechado na rua”. Não foi engano nem piada. Foi angústia. Nas televisões, nas escolas e nas igrejas continua a fazer-se o discurso da família unida, da disponibilidade e atenção entre as pessoas, do emprego das nove às cinco, da casa acolhedora. Mas para aquele miúdo, até os dragões ou os monstros alados são muito mais autênticos que esses ideais de fantasia harmoniosa. De que testemunho de verdade precisam aqueles, tantos, que passam os dias fechados na rua?

Monday, April 25, 2005

o que vale a liberdade

A liberdade que celebramos hoje fez-nos andar por caminhos desencontrados, confundindo aqueles que serenamente sabiam cada detalhe da vereda habitual. A liberdade que celebramos hoje trouxe-nos sons, palavras e gritos cruzados e sobrepostos, baralhando a orientação de quem se guiava por vozes sempre conhecidas. A liberdade que celebramos hoje trouxe-nos murmúrios de desconhecidos desafios de Deus, que deixaram perplexos aqueles que julgavam que Deus tinha sítios certos e seguros. A liberdade que celebramos hoje fez-nos crescer também como cristãos. E isso vale por si.

Friday, April 22, 2005

missão cumprida?

Suponho que ninguém agora lhes dará especial atenção. Mas penso no coração dos cardeais que abandonam agora Roma. Estes 115 homens viveram certamente os últimos dias no fio da navalha, entre o serviço de Deus em cada pessoa frágil e a realpolitik da condução dos destinos de uma instituição com influência planetária. Agora regressam silenciosos a casa. Não sabemos – talvez nunca venhamos a saber – o que lhes vai na alma depois de a sua decisão ter feito repicar os sinos de São Pedro. Esse segredo ficará guardado no íntimo de cada um deles. Agora regressam às suas comunidades. E com elas partilham anseios pelo que vai ser a Igreja do futuro. Esse anseio, sendo íntimo, é público. Tem que ser público.

Wednesday, April 20, 2005

a comunidade, sempre

“Temos um Papa!”, gritou-se ontem da varanda de São Pedro para o mundo. Encerrou-se o tempo da espera. Terminou o momento de decisão de porta fechada. Agora é de novo o tempo do povo numeroso, diverso e participativo. Agora é de novo o tempo de a comunidade experimentar caminhos e mostrar adultez. Feche-se pois o tempo da concentração das atenções num só homem. Saibamos ganhar de novo o protagonismo para toda a Igreja. Santa, católica e apostólica.

Friday, April 15, 2005

o resto é paisagem?

O circo mediático vai voltar a Roma para fazer a cobertura do conclave que escolherá o novo Papa. Só o secretismo absoluto da reunião evitará a disputa de exclusivos ou até mesmo um ou outro prós-e-contras sobre o que se diz e pensa nas reflexões dos 117 cardeais. Hiper-concentrados na Praça de S. Pedro, balançando entre os jogos de poder e a vocação do serviço, ignoraremos milhões de gestos de amor aos pobres que, por toda a parte, serão praticados, de modo anónimo e imprevisto, por discípulos de Jesus. Hiper-concentrados na Igreja, ficaremos com uma imagem muito reduzida do que ela é a cada momento.

Wednesday, April 13, 2005

de graça

“Sabes por que te telefonei? Olha, por nada! Apeteceu-me falar contigo, só isso…”. A gratuidade dos gestos e das palavras tornou-se um bem em vias de extinção. Dizem-se palavras de elogio ou fazem-se gestos de ternura mas, mais à frente, cobra-se o efeito. Comercializámos grande parte das nossas relações que vemos cada vez mais como trocas e não como dádivas. Neste universo, em que tudo é jogo estratégico, não há lugar para o desinteressado e para o inútil. Nas nossas caixas de correio passámos a receber quase só contas e publicidade. E essa é apenas a expressão mais trivial da frieza funda que tomou conta da nossa experiência quotidiana de humanidade.

Monday, April 11, 2005

os sinais

Ontem, nas igrejas lembrou-se a cegueira dos dois amigos que caminharam com o ressuscitado até Emaús sem perceberem quem ele era. Em Portugal, a palavra Emaús está hoje associada a um testemunho forte de serviço aos mais pobres dos pobres. O que tem então uma coisa a ver com a outra? Tudo. O que fez os dois amigos despertar para a identidade do que com eles caminhava foi a partilha do pão e do vinho. Só esse sinal tornou Jesus presente entre eles. Na sociedade utilitarista e pragmática que é a nossa, o amor aos sem-abrigo e aos mais pobres é quase tão absurdo como caminhar lado a lado com um morto. Só entende esse amor a sério quem vê nele um sinal da presença daquele que fez do amor aos mais fracos a arma de resistência a todos os limites. Como em Emaús.

Friday, April 08, 2005

a cadeira

A cadeira de Pedro está agora calmamente vazia. Um vazio e uma calma estranhos depois da grande efervescência informativa dos últimos dias. Não se adivinham as prioridades estratégicas dos cardeais. Mas sabemos das ânsias do mundo. E, por elas, sabemos da espera por um irmão, um amigo, uma referência cívica e moral. Nesta espera não podemos ficar passivos. Agora que a cadeira de Pedro está vazia, a responsabilidade da comunidade dos crentes pelo seu testemunho de fé e de atenção ao mundo é ainda maior.

Wednesday, April 06, 2005

protagonismos

Por estes dias, o mundo olha mais atento para a Igreja. Há quem procure nela a segurança da continuidade e quem espere sobressaltos anunciadores do novo. A governação da instituição eclesial tornou-se tema de abertura dos telejornais e os comentadores encartados preparam já as análises geopolíticas dos equilíbrios maioritários no conclave que aí vem. Pelo meio do ruído mediático, não é fácil manter Jesus de Nazaré como o único protagonista verdadeiro. Mas seria um gravíssimo erro falar de Pedro ignorando Jesus, ver a Igreja esquecendo o Evangelho.

Monday, April 04, 2005

luto distraído

A mediatização intensa da morte do Papa pode distrair os cristãos do essencial. E o essencial, por extraordinária coincidência, estava escrito na leitura dos Actos dos Apóstolos que o calendário litúrgico tinha reservado para ontem: "Todos os que haviam abraçado a fé vivam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam propriedades e bens e distribuiam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um. Todos os dias frequentavam o templo como se tivessem uma só alma (...), tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e gozando da simpatia de todo o povo." O luto do Papa não pode servir de alibi para esquecer a grande distância que separa os cristãos deste estilo de vida.

Friday, April 01, 2005

true lies

Aprendemos em meninos que a mentira seria talvez o pior de todos os pecados. E institucionalizámos um dia das mentiras para dar às pequenas inverdades um estatuto benigno e até carinhoso. Sugiro que institucionalizemos o dia das verdades e que o façamos com o espírito contrário: para mostrar como as grandes verdades do nosso tempo – a guerra, a fome, a pobreza, o desamor – são alimentadas por multidões de pequenas mentiras.