Wednesday, March 30, 2005

superioridades morais

Fartei-me daquela frase feita e repetida ironicamente: “isto não vai lá com caridade, só com justiça social”. Percebo a ideia mas acho-a cada vez mais pobre. Precisamos de perceber os limites da política e as potencialidades da caridade. E, com isso, precisamos de sobrepor a uma ética da justiça, em que o ser humano aparece como titular de direitos, uma ética do cuidado em que o ser humano é captado nas suas fragilidades.

Monday, March 28, 2005

geração sem fim

“Isto é muito complicado!” A frase, talvez a mais repetida das frases que ouvimos no dia a dia, diz muito da incapacidade geral de ir além da navegação à vista. Tudo é tido como muito complicado e confessamo-nos impotentes para fazer mais do que gerir o mundo. Se a isto a ressurreição disser nada, tudo terá sido em vão. Um dia depois da celebração da vitória sobre todos os limites, somos chamados a colocar mais ambição nas nossas vidas. E a pôr como horizonte de cada momento gerar o mundo e não apenas geri-lo.

Friday, March 25, 2005

escolha pública

Não estava escrito nas estrelas nem foi uma fatalidade pré-determinada. Jesus não foi uma marioneta comandada pelo destino. Foi a sua vida, feita de opções sempre claras – tão claras que incomodavam as regras sociais e religiosas à sua volta – que o conduziu até àquela escolha suprema: recuar para a normalidade bem vista ou dar-se todo e superar o último dos limites, o da morte. Naquela cruz ficou expressa a nossa tremenda incapacidade de perceber a radicalidade da sua escolha.

Wednesday, March 23, 2005

à mesa

As horas que aí vêm vão ser de uma intensidade extraordinária para os cristãos. E, nessa vertigem de imagens e de palavras já sabidas, talvez se percam momentos essenciais. Como aquele que amanhã será lembrado, em que a comunhão de um pedaço de pão e de um copo de vinho foi adoptada como símbolo da fraternidade universal. Podíamos ter um deus sisudo e distante. Mas não: ele revela-se na festa de amigos à volta duma mesa. E faz da partilha a sua identidade.

Monday, March 21, 2005

stressemana

Certamente não terá sido numa semana que tudo se precipitou para Jesus. Ele estava condenado, havia muito, pelos defensores dos cânones religiosos e das conveniências sociais que se sentiram definitivamente postos em causa pela sua subversão. Mas disso não nos pode ficar uma memória de romance policial, com interesses obscuros, espionagem e efeitos especiais à mistura. A semana que agora arranca convida-nos a experimentar o stress da consumação iminente da nossa condenação social. Mas a fazê-lo com a confiança na superação dessa e de todas as condenações.

Friday, March 18, 2005

bateau lavoir

Nas telas expostas nos melhores museus ou no desfolhar de álbuns de história da pintura, vemos sucederem-se representações muito diferentes da realidade. O que os diferentes movimentos trouxeram consigo foi sempre a proposta de um novo olhar, desvelador de dimensões antes inexploradas. É desse arrojo que precisamos como crentes – a coragem de intuir o contorno do que começa por ser incompreensível e a que somos convidados a conferir nitidez. É desse olhar, que desconstroi e que refaz, que carecemos.

Wednesday, March 16, 2005

túmulos

Para o melhor e para o pior, volta a atravessar-se no nosso caminho a tese de que o corpo é um limite para o espírito. Um túmulo mesmo, quando fica paralizado, quando se deteriora ou quando deixa de dar prazer. Atirar os velhos e os doentes para longe da nossa vista é o modo que as nossas sociedades encontraram para exprimir subserviência para com o dogma da funcionalidade. Insistir em trazer os corpos que não seduzem para o centro da atenção colectiva é o modo que alguns encontram para, ao invés, assinalar a doença e a fragilidade física como os novos territórios da luta pela dignidade e pelos direitos humanos. Um desafio à reflexão crítica dos cristãos, portanto.

Tuesday, March 15, 2005

para o luís

De Leonardo Boff: "O sentido que damos à vida depende do sentido que damos à morte. Se a morte é fim derradeiro, então de pouco valem tantas lutas, empenho e sacrifício. Mas se a morte é fim-meta-alcançada, então significa um peregrinar para a fonte. Ela pertence à vida e representa o modo sábio que a própria vida encontrou para chegar a uma plenitude negada neste universo demasiadamente pequeno para o seu impulso e demasiamente estreito para a sua ânsia de infinito. Somente o infinito pode saciar uma sede infinita."

Friday, March 11, 2005

@s brav@s

Há um ano, em Madrid, o choro e a estupefacção cortaram, como navalha afiada, a rotina do mundo. Hoje haverá memórias magoadas, haverá palavras de promessa e também muitos disfarces para a falta de vontade de entender o essencial. Haverá luto e haverá hinos. Sem lugar na ribalta, haverá gente disposta a perdoar sem esquecer. Ignorá-la-ão. Ou lançarão sobre ela o anátema da cobardia. É por essa gente que eu hoje quero rezar. É a ela que eu devo mais um pequeno alento para confiar na História.

Thursday, March 10, 2005

praxis

Leio em Paulo Freire: “Teoria sem prática é verbalismo; prática sem teoria é activismo”. Ele certamente não estava a pensar nos cristãos quando escreveu estas sábias palavras. Mas isso não livra os cristãos de as assumirem como recado. Fé sem obras é palavreado estéril para consumo próprio. Mas a ostentação do rótulo cristão na acção sem a humildade crítica que a fé impõe a tudo é ainda pior: é hipocrisia para consumo público.

Monday, March 07, 2005

kyrie

Não houvesse exploração e não se celebraria o Dia do Trabalhador. Não houvesse violência e guerra e não se celebraria o Dia da Paz. Não houvesse uma cultura que torna natural a dominação masculina e não se celebraria o Dia da Mulher. Por isso, amanhã é dia de confessarmos o pecado social da subalternização das mulheres e de nos convertermos ao dom da igualdade na diferença. Assim seja.

Friday, March 04, 2005

metástases

O poder está muito mais espalhado do que parece. Erradamente, associamos poder a política e política a governação. Ora, cada um e cada uma de nós exerce poder a cada momento que passa. Toda a nossa capacidade de tomar decisões e de influenciar as decisões dos outros é poder. Poucas vezes o assumimos assim e preferimos disfarçá-lo de jeito, competência ou até de serviço. Mas é mesmo poder. E o que nos incomoda é sermos obrigados a pensar com que critérios o exercemos nas mais pequenas coisas.

Wednesday, March 02, 2005

crescer

O mistério do tornar-se adulto nunca foi bem explicado. A lenga-lenga do aumento da responsabilidade e da ponderação nas decisões resiste mal às palavras frescas da utopia e ainda pior aos gestos reveladores de um coração puro. Ser adulto de modo encantado é o teste mais sério ao nosso crescimento. Creio que, para os cristãos, a fé num Deus menino é um convite irrecusável à resistência contra a sisudez como fatalidade.