Friday, December 31, 2004

o outro dia

De hoje para amanhã talvez não mude nada de substancial. Há quem festeje, há quem nada celebre e para ambos amanhã será apenas mais um dia com 24 horas, com os problemas e com as alegrias do costume. A Igreja Católica propõe-nos um outro olhar sobre este dia que se sucede aos 365 acabados de andar: fazer de amanhã, o primeiro dia do ano, uma celebração da paz. Não haverá festa. Não se prevê fogo de artifício. Não virão vedetas de telenovela brasileira para desfilar. E nisso estará a força do dia da paz: ser um dia normal e no entanto atravessado por um desafio essencial, daqueles de que se faz o que é verdadeiramente importante.

Wednesday, December 29, 2004

que será será...

Que força tem o futuro no presente? Habituámo-nos a viver cada dia fugindo a esta grande questão. Esquecermo-nos de que existe um amanhã e que tudo o que fizermos – e não fizermos – hoje se vai projectar nos dias que vêm é uma espécie de fuga ao pesadelo. Mas, como dizia um herói da banda desenhada, o problema do futuro é que se vai tornando sempre em presente. Não há fuga possível. Agora que um novo ano se aproxima, simbolizando uma súbita entrada do futuro no presente, é mais que tempo de levar a sério a ideia de que temos muito mais a aprender com o que vem do que com o que passou.

Monday, December 27, 2004

unicidade

Foi Simone Weil que escreveu: “O homem forte não é o que possui os meios do poder e da violência. O que possui a força é aquele que sabe resistir à paixão colectiva e guarda o controle do próprio destino.” Entre a força de ser sujeito e a violência gratuita de quem se limita a fazer parte da multidão está uma decisão essencial. É fácil gritar no meio dos gritos dos outros. Difícil mesmo é assumir o que há de único em cada um de nós. Pensarmos pela nossa própria cabeça e encararmos de frente os riscos e as responsabilidades que daí resultam é um desafio à nossa coragem. No trabalho, na família, no partido ou na associação. E na Igreja também.

Friday, December 24, 2004

distracções

Talvez hoje a azáfama da preparação da consoada não nos deixe ver a grávida toxicodependente que procura um vão de escada para não passar frio. Talvez hoje a ansiedade de revermos os que nos são queridos nos impeça de reparar no casal de sem-papéis que ninguém quer acolher. Talvez hoje a procura de um lugar para o carro junto à entrada da missa do galo nos faça não notar no menino maltrapilho que todos repudiam. A canção diz que “Natal é quando um homem quiser”. E a vida, se não estivermos distraídos, mostra-nos que o esquecemos e negamos a cada dia que passa.

Wednesday, December 22, 2004

pacto de estabilidade

Daqui a umas horas, vamos jurar uns aos outros que este ano foi, definitivamente, o último em que gastámos uma pequena fortuna em prendas. E, em silêncio, prometeremos a nós próprios cumprir no próximo ano a promessa de um Natal com os mais pobres dos pobres. Com a consciência mais tranquila pela grande coragem de pensar assim, vamos passar a consoada em paz. E nessa paz falsa ficaremos até ao próximo Natal.

Monday, December 20, 2004

quase

Agora começa a semana em que a mudança fica por um fio. Por um fiozinho de nada não vamos levar totalmente a sério o primado dos pobres e das suas lágrimas. Por um fiozinho de nada não nos vamos converter ao chamamento da paz e da humildade fraterna. Por um fiozinho de nada não nos vamos libertar do consumismo febril. Os dias que agora começam podiam ser uma tremenda e definitiva revolução nas nossas vidas. Mas, também este ano, não a vamos deixar acontecer. Por um fio!...

Friday, December 17, 2004

a cidade invisível (ii)

O mundo dos pobres, sem abrigo e sem horizontes, é um mundo cru e diferente dos das nossas casas quentes. É um mundo de pequeníssimos passos, em que um banho, uma sopa, uma palavra ou uma decisão banal são tesouros de valor incalculável. É um mundo em que as memórias que contam são as da sobrevivência mais cruel. É um mundo em que o afecto é uma carta fora do baralho. Insistimos em olhar esse mundo com os olhos formatados pela nossa normalidade segura e confortável. E só conseguimos ver pessoas estranhas com práticas estranhas. Quem é mais pobre afinal?

Wednesday, December 15, 2004

a cidade invisível (i)

Vemos o que queremos e fechamos os olhos ao que não queremos ver. Nas nossas cidades, em casas certas, em ruas movimentadas, em espaços que conhecemos, há uma realidade de pobreza e de exclusão insuportável. Não é das periferias que falo, é do miolo das cidades onde a velhice solitária, a pobreza desarmada, a prostituição magoada e a marginalidade doente vivem sem disfarce. Refugiada na sua hipócrita ignorância, a cidade normal pretende não ver essa cidade impura e carente. E paga aos técnicos e aos polícias para tratarem desse problema.

Saturday, December 11, 2004

uma migalha da criação

Há 56 anos, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois do extermínio como estratégia de guerra, depois da invenção (europeia!) dos Estados genocidas, depois da colonização e da esterilização cultural de povos inteiros, o mundo abriu uma pequena brecha para o acolhimento dos direitos humanos. Lá do alto, Deus, ainda decepcionado com a marcha da criação, viu que isso era bom.

Wednesday, December 08, 2004

sem mácula

Conceber de forma imaculada. O desafio é gigantesco. Limitá-lo ao campo biológico - como se tende a fazer, desajeitadamente, nos dias 8 de Dezembro - revela uma pobreza confrangedora. Porque neste tempo, tudo é concebido com uma finalidade estratégica meio escondida. Concebem-se posições pessoais, concebem-se instituições, concebem-se gestos e palavras, tudo pré-ordenado a objectivos de promoção pessoal ou de grupo. Nada é gratuito, nada é imaculado. Talvez por isso a galhofa que alguns fazem da Imaculada Conceição revele afinal a má consciência de quem gostaria de ser mais puro mas não consegue.

Thursday, December 02, 2004

o botão do som

Será destino dos profetas serem só vozes que bradam no deserto? Foi assim com João Baptista e tem sido invariavelmente assim com aqueles que se dão por uma causa que se afasta dos cânones do tempo. Ser profeta não é ser tontinho ou teimoso contra tudo e contra todos. Ser profeta é anunciar o futuro sem medo. Os cristãos, por exemplo, são profetas? Clamam no deserto? Ou são acomodados ao mundo que está e falam baixinho para não incomodar?