Friday, April 30, 2004

multicolor

A relação do cristianismo com a Europa não é nem de glória absoluta nem de miséria clamorosa. A História não é a preto-e-branco e não é sério invocar apenas a Inquisição assim como não é sério lembrar apenas a obra civilizacional das Igrejas. Amanhã, 1 de Maio de 2004, escreve-se outro capítulo do livro dos desafios a esta relação complexa entre cristianismo e Europa. O alargamento da União Europeia a 10 novos Estados membros será um teste. E daqui a muito pouco tempo confirmaremos que é muito mais importante para o cristianismo afirmar-se anonimamente como lastro de solidariedade e de defesa do bem comum do que ver proclamada a sua importância nas letras douradas de uma qualquer constituição.

Wednesday, April 28, 2004

ao espelho

A detenção de uma dúzia de pessoas no âmbito do processo sobre corrupção no futebol pôs de novo o país confrontado com a sua imagem ao espelho. Olhamos para nós como povo e gostamos cada vez menos do que vemos. A podridão humana promovida a liderança, o chico-espertismo e o desprezo pelo bem comum vistos como provas de grandeza individual, a quebra da solidariedade colectiva (nos impostos, nas estradas, nos condomínios, na segurança social) praticada como se devesse ser assim. Precisamos urgentemente de reflectir a fundo sobre o que significa sermos um país mais europeu. E precisamos muito de aceitar a conversão como o grande desafio das nossas vidas.

Tuesday, April 27, 2004

antecipação

Ontem, a Ordem da Liberdade foi atribuída a um punhado de cidadãos portugueses, pelo Presidente da República, em nome de todos nós. Foi um pequeno conjunto de pessoas que se entregou, ao longo de toda a sua vida, ao combate pela democracia e pelos direitos humanos. Sinto uma ponta de orgulho por ser de um país que faz da liberdade o mote da sua principal distinção cívica. E penso que, para os cristãos, esta cerimónia deve fazer pensar em que para se ser santo não é preciso o isolamento contemplativo mas sim o compromisso pleno pelos outros.

Friday, April 23, 2004

viva!

A bênção de regimes políticos é um disparate. Mas o juízo das experiências políticas pelos critérios do Evangelho é uma exigência indeclinável para os cristãos, porque a fé não é um tesouro íntimo para ficar guardado a sete chaves. Os caminhos plurais que a democracia portuguesa percorreu nos últimos 30 anos não podem ser lidos por uma tabela única e oficial dentro da comunidade cristã. Mas o primado da liberdade e da democracia, esse só pode ser objecto de entusiasmo. Porque é na capacidade do homem para escolher as diferentes expressões do bem que reside o essencial da grande mensagem de confiança que é o cristianismo.

Wednesday, April 21, 2004

a influência da ciência na decência

A condição crente e a cultura científica fazem parte de universos diferentes. Mas não necessariamente opostos. Nem a ciência nem a fé são neutras social e politicamente. A fé foi frequentemente manipulada para abafar a legítima indignação de povos maltratados. Hoje a ciência arroga-se o estatuto de critério único da verdade e da felicidade, ao mesmo tempo que se afasta de exigências como o bem, o belo ou o justo. Uma ciência que se orienta para o reforço da competitividade das empresas e das economias deixou de ter a ambição de conhecer mais e passou a ter a ambição de explorar mais. Julgar eticamente a ciência é algo que não se pode limitar à discussão sobre embriões ou sobre clonagem. Num momento em que se discute em Portugal o modelo de financiamento da investigação científica, é bom que os cristãos julguem as propostas segundo o critério de saber mais e não segundo o de poder mais.

Tuesday, April 20, 2004

em nome da criação

A semana que o Presidente da República dedicou ao ambiente teve o imenso mérito de evidenciar que não se trata de lirismo campestre para ricos mas sim de um domínio essencial em que se joga a qualidade indispensável da vida de todos. Os fogos florestais, as mudanças climáticas ou os derrames de crude no mar não são um mal inevitável de um processo de desenvolvimento necessário, mas sim a demonstração de que esse modelo de desenvolvimento nos conduz a um dramático beco sem saída. Preservar o ambiente é dar continuidade à opinião de Deus depois de contemplar a criação: ele viu que “isso era bom”

Monday, April 19, 2004

enquanto o diabo esfrega um olho

Uma semana apenas depois da festa da ressurreição, o louvor da morte está aí em todo o seu esplendor. Sem pestanejar, muitos cristãos fazem a apologia da pena de morte para os que atentam contra gente indefesa em Madrid, ao mesmo tempo que elogiam os que vertem bombas contra gente igualmente indefesa mas em Bagdad, em nome da democracia e dos direitos humanos. Bastou uma semana, apenas uma semana, para que o milagre da vida tenha passado a ser importante apenas em função das circunstâncias.

Wednesday, April 14, 2004

Deus à defesa?

Multiplicam-se as mensagens de que no Iraque se trava uma guerra em nome dos nossos valores civilizacionais. Não é nada claro quem é esse “nós” a quem a guerra protege a civilização. Temo que se queira dizer que é o ocidente cristão. E temo ainda mais que os cristãos aceitem passivamente essa visão da História. Porque isso significará que não aprendemos nada com séculos de ligação perversa entre fé e força. E que continuamos a pensar que o nosso Deus precisa de armas para ser defendido.

Monday, April 12, 2004

Portugal profundo

Passeamos pelo país e vemos sinais exteriores de cristianização um pouco por toda a parte. Cada cruzeiro, cada ermida, cada alminha carrega memórias de bondade e de solidariedade inestimáveis. Mas também memórias de submissão, porque muitas vezes o temos a Deus serviu de cobertura para o temor aos poderes estabelecidos. E memórias de cumplicidade com as injustiças porque bem comum e ordem pública foram confundidos vezes demais. Não sei, nem ninguém sabe, o que seria este país sem a cristianização. Mas sei que séculos e séculos de cristianismo não foram capazes de impedir que, hoje, o fosso entre pobres e ricos seja uma realidade de primeira grandeza entre nós. Os sinais exteriores de cristianização têm coabitado bem demais com uma prática socialmente estéril. É também esse o país que se vê ao passear.

Friday, April 09, 2004

em tempo real

Se fosse hoje, a sua cobertura em directo teria sido disputada pelas televisões. Os comentadores encartados viriam demonstrar como era realmente imprescindível abatê-lo, num quadro de luta contra a subversão. Os senhores da lei viram tranquilizar-nos dizendo que todos os trâmites processuais haviam sido cumpridos, incluindo até uma pergunta ao povo. Pelo meio, chegar-nos-iam imagens arrepiantes do condenado e, logo ali, haveria de ser entrevistado um empresário supostamente interessado em apoiar um programa de erradicação do fundamentalismo alimentador de mentes perversas. Por volta das três da tarde terminariam os directos. O povo voltaria às telenovelas do costume. E ninguém teria compreendido nem um bocadinho da importância transcendente daquelas últimas horas.

Wednesday, April 07, 2004

o que não tem sentido

Podia ter jogado na duplicidade fantasiosa entre corpo e alma e ter prometido oferecer a sua alma pelos males dos outros. Mas não: foi mesmo o corpo que ele ofereceu. Não precisou de acreditar na recompensa eterna pelo seu sacrifício para o concretizar. Morreu, gratuitamente, pelos outros. Dois mil anos depois, continuamos totalmente desarmados diante da grandeza e da radicalidade dessa ruptura com tudo aquilo que o bom senso recomendaria.

Monday, April 05, 2004

a branca desesperança

Os sintomas de desgaste da política são muitos. A sugestão do voto em branco em massa como suposta expressão de revolta é apenas mais um. Olhemo-lo a sério e não como devaneio de ficção. E a sério a sério é, mais do que crítica, uma confissão de desesperança. E também de preocupante distracção. Porque só quem anda desatento de tantas expressões de empenhamento e de serviço desinteressado dos outros pode desistir assim de acreditar que a mudança é possível. A este pessimismo derrotista, que confunde insuficiências da democracia com total ausência de alternativas, só cabe opor um tipo de optimismo: aquele que brota da certeza de que o impossível acontece e de que nenhum obstáculo, nem mesmo a morte, é definitivo.

Friday, April 02, 2004

catecismos

Há 28 anos, neste mesmo dia 2 de Abril, foi aprovada a Constituição da República. Com revisões e polémicas pelo meio, a Constituição tem sido um guia da nossa vida colectiva como país democrático. Um povo adulto não precisa de catecismos infantis e não é isso que a Constituição pretende ser. Um povo aberto não precisa de tábuas da lei rígidas e não é isso que a Constituição procura ser. Não tenho visto os cristãos pronunciarem-se sobre este texto. É mau que assim seja, porque ele é muito mais importante para a nossa experiência crente numa república plural do que a maior parte dos guiões habituais usados pelo povo cristão.