Friday, February 27, 2004

de roxo

Ai dos cristãos que só sabem testemunhar tristeza. Há quem evidencie uma fé sempre vestida de roxo. Uma fé amargurada diante dos caminhos do mundo, incapaz de ver nele mais do que um vale de lágrimas. É uma fé vesga, que percebe na Quaresma a preparação de uma morte sem ressurreição. Essa é a fé dos derrotados e sem esperança. Não é a fé ancorada em Jesus de Nazaré.

Wednesday, February 25, 2004

provisórios

É de cinzas esta quarta-feira. No passado, ela servia para manter o império da tristeza sobre a irreverência do riso. Se hoje não é mais assim, a quarta-feira de cinzas é, de toda a maneira, o anúncio de um fim. A advertência de que, para lá de todas as fantasias, a nossa realidade é tremendamente frágil. Se o humor é vital para tudo pôr em causa, a noção de provisoriedade das nossas obras é-o ainda mais.

Monday, February 23, 2004

o riso, essa graça

Houve um tempo, não muito longínquo, em que o Carnaval era uma válvula de escape das sociedades contra a asfixia sisuda e deprimente imposta pelos poderes eclesiais. Esse tempo, em que o riso era quase clandestino – porque ao sabor da vida era atribuída a cor do pecado – não está definitivamente ultrapassado. É ainda grande a tentação de sacralizar o mau humor e a frieza. E de não dar à gargalhada o valor de um autêntico dom de Deus.

Sunday, February 22, 2004

ressurreições

A herança deixada por Jesus de Nazaré é exigente demais. Só é digno de se chamar seu seguidor quem, primeiro, tiver dado todos os seus bens aos pobres e se tiver desinstalado por inteiro, como ele próprio desafiou o jovem rico a fazer. E só saberá ser seu próximo quem assumir a ressurreição como uma superação de todos os limites. Talvez assim a fasquia esteja mesmo alta demais. Mas não é de todo inatingível. Porque cada pequena conversão antecipa, em pequena escala, a ressurreição plena.

Wednesday, February 18, 2004

os nomes da coisa

Já não há Terceiro Mundo? A expressão parece ter caído em desuso. A moda escolheu outros adjectivos: estados frágeis, países em desenvolvimento, mundo da periferia, do Sul. Mas, se mudaram as qualificações retóricas, permanece a realidade substantiva: a de uma imensa (e crescente) multidão de pobres, condenados a eternizar-se nesse estatuto e mantidos policialmente nos seus guetos. Creio que apartheid é o nome mais rigoroso para representar essa realidade. Sem mais adjectivos.

Monday, February 16, 2004

desanonimato

A História é feita de histórias. Dentro de cada grande data da nossa memória colectiva, há centenas, milhares, de pequenas memórias individuais. Se pusermos os nomes e os corpos concretos que habitaram cada batalha, cada revolução, cada conquista, cada catástrofe, se tirarmos o anonimato à História e lhe dermos a cor das pessoas concretas, com tristezas e entusiasmos concretos, não nos será mais possível permanecer nos discursos vagos e nos princípios gerais. Os santos, os heróis e os patifes não existem no nevoeiro dos sem nome.

Friday, February 13, 2004

13

Hoje é sexta-feira 13. Vai repetir-se o discurso ridicularizador da superstição e vai ser proclamada a superioridade da razão sobre o misticismo. Mas valerá a pena estar atento e descobrir que, afinal, a superstição não é só o medo de um gato preto ou de passar por baixo de uma escada. Não, é também o medo infantil do castigo de um Deus ameaçador, o entusiasmo infantil com a promessa do paraíso no consumo ou a crença infantil na infalibilidade da ciência. O espaço da superstição nas sociedades modernas é muito grande. Não cabe numa sexta-feira 13.

Wednesday, February 11, 2004

vidinhas

Contaram-me dum urbanista do século XVIII que foi preso e torturado por ter expressado a ambição de ordenar o território de uma cidade de um país cristão. Mas nunca me contaram de nenhum promotor de condomínios fechados que tenha sido condenado por pecar contra a convivência e contra a confiança. É assim a pequenez dos horizontes dominantes: mais depressa castigam a ousadia dos visionários do que a perversão dos medos do futuro.

Tuesday, February 10, 2004

sejamos sensatos, pois claro!

Há demasiado realismo no nosso tempo. Mal o desejo da utopia se esboça, logo aparece alguém a recomendar bom senso e, mais que tudo, que o sonho seja submetido ao teste da realidade. A resignação e a capitulação são irmãs gémeas desse bom senso que esvazia na fonte qualquer mudança sonhada. Uma sociedade que amaldiçoa as utopias é uma sociedade que disfarça de rigor aquilo que, de facto, não é mais do que impotência.

Friday, February 06, 2004

escalas de fé

Há uma visão crente das relações internacionais? Habituámo-nos a aceitar que a política internacional é um campo minado, em que só a lei do mais forte conta e do qual valores como solidariedade ou franqueza estão, por definição, arredados. E, no entanto, é à escala internacional que a injustiça atinge patamares mais gritantes, que a indignidade se torna mais sórdida, que o desnivelamento é mais inaceitável. Tudo a desafiar a posições éticas corajosas. Não há, nem deve haver, um discurso cristão único sobre a política internacional. Mas, talvez hoje como nunca, estão os crentes confrontados com o imperativo de tornarem clara a dimensão mundial da esperança e do bem comum.

Wednesday, February 04, 2004

água abstracta

Em tempo de chuva invernosa não há quem pense em secas. Mas, precisamente porque não estamos em angústia de escassez, este é o momento certo para olharmos crítica e pedagogicamente para a nossa relação com a água. Para os cristãos, ela é o símbolo da renovação, do acesso à vida plena. Mas, estranhamente, isso parece nada ter a ver com o facto de mais de mil milhões de pessoas não terem água potável no seu dia a dia, enquanto a água jorra ilimitadamente nas torneiras das casas das boas famílias cristãs. Esse é seguramente um dos maiores pecados dos cristãos: exibirem uma fé de símbolos e não de conversões concretas. E esse pecado não há água que o lave…

Monday, February 02, 2004

a indizível ausência

Vão-se apagando os ecos emocionais que a morte do jovem futebolista do Benfica provocou. Muito para lá da repugnante exploração mediática da dor, sobressaiu a experiência colectiva da indizível ausência que é a morte. Por um momento, foi como se um brutal reality show nos tivesse vindo revelar que somos todos, mesmo os mais atléticos e bonitos, feitos de fragilidade extrema. E que, no fim, todos partiremos sem deixar endereço.