Wednesday, November 30, 2005

as mães

Em muitos lugares do mundo, a luta contra a impunidade dos torturadores e contra o esquecimento das vítimas é animada por mães. Chamam-lhes tontas por não terem outras armas além das fotografias dos seus filhos desaparecidos. Desprezam-nas por ignorarem a complexidade dos factores que geram violência. A tudo isso e a muito mais as mães respondem com uma suavidade estranha e com uma tenacidade sem fim. Bem-aventuradas essas mulheres, porque nos mostram que a memória dos afectos é sempre mais forte que as estratégias de poder.

fosso

Recuperar a ideia de Mediterrâneo como espaço de união entre continentes e culturas é um imperativo político e moral do nosso tempo. Em Barcelona, por estes dias, a manifesta falta de vontade dos líderes políticos de um lado e do outro mostrou porque é que os arames farpados de Ceuta e de Melilla continuam e continuarão a ser instrumentos de morte. O que podia ser um espaço de comunidade é cada vez mais um fosso de vergonha. O Mediterrâneo é o nome de um dos mais graves pecados estruturais do nosso tempo.

Friday, November 25, 2005

dia d

No calendário banalizado das efemérides consta hoje o Dia Internacional de Eliminação da Violência contra a Mulher. Mas este não é um dia banal. É um dia para pôr a nu as fragilidades de quem tem poder e que se exibem na agressividade e numa violência cobarde. As mulheres vítimas de violência poucas vezes falam, vergadas pelo medo e por uma cultura que as manda resignar. Hoje é o dia de deitar fora essa perversão e de repudiar todos os códigos que a aceitam.

Wednesday, November 23, 2005

ilhas

A cidade é também o lugar do anonimato e do desencontro. Na ressaca da reflexão sobre a evangelização da cidade que o Congresso da Nova Evangelização suscitou, importa perguntar acima de tudo como se faz comunidade nesta cidade anónima e profundamente dividida. A prática das grandes assembleias de massas ao domingo está longe de responder a este desafio. Falta-lhe espaço para a interioridade, para o afecto, para o eco pessoal da fé e da esperança. Estão os cristãos preparados para o repto de uma evangelização assente em pequenas comunidades de irmãos, capazes de dar testemunho de fraternidade para fora e para si mesmas?

Monday, November 21, 2005

vigilância

Este tempo de advento é tempo de vigilância. Mas vigiar para quê? Não cabe no arrojo do Evangelho uma vida vivida à defesa. E muito menos uma prudência individualista para me salvar a mim, mantendo-me indiferente à sorte dos outros. É como humanidade que nos salvaremos. E, por isso, temos que estar vigilantes por todos, para que em todos se cumpra o gosto de Deus pela vida em abundância. Sejamos, pois, ousados na luta pela nossa comum humanidade. Porque do juízo sobre o nosso empenhamento não sabemos o dia nem a hora.

Friday, November 18, 2005

tolerância mil

O Dia Internacional da Tolerância, que ontem se assinalou, não está em cartazes que nos seduzem para os centros comerciais. Não há festa de consumo que o mercado tenha conseguido por agora associar à tolerância. Ainda bem. Porque não nos distraímos do essencial que é a dificuldade em levarmos a sério o mandamento do amor ao próximo sempre que o próximo é diferente de nós. A tolerância, ou é expressão de amor ou é sobranceria. Bem aventurados os que são tolerantes assim.

Wednesday, November 16, 2005

do outro lado da morte

O pior dos traumas da guerra não é o do risco de ser morto, é o da realidade de matar. O inferno que invade as vidas de quem fez a guerra é feito de medos e de memórias insuportáveis de gritos, de choro e de crueldade. Mas a memória de matar despedaça para sempre a imagem que tem de si mesmo quem tirou a vida. Por isso mesmo, por pôr fim ao outro, mesmo quando ele tem o rótulo de inimigo. O trauma de quem matou exprime, pela dor, a nossa comum humanidade e faz dela um dom ímpar.

Monday, November 14, 2005

tubo de ensaio

A UNESCO sugere a celebração de um Dia Mundial da Ciência ao Serviço da Paz. O conhecimento científico nunca foi neutro. O rigor da investigação já branqueou muitos massacres. O apuro do cálculo e da experimentação têm sido, vezes demais, postos ao serviço de estratégias de morte. É para a vida e para a paz e não para a morte e para a guerra que queremos mais ciência. O progresso científico não tem que ser uma sombra, pode ser um dom.

Friday, November 11, 2005

o mundo cá dentro

Num tempo em que decorre em Lisboa a terceira sessão do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, valeria a pena dirigir esse objectivo para os próprios cristãos. Pensar a evangelização como destinada à conversão do mundo descrente e como privilégio de cristãos cientes da imensidão da sua fé, é um tremendo equívoco. São os cristãos os primeiros a precisar de se reconverter permanentemente à radicalidade do Evangelho e a fazê-lo em diálogo com este mundo. Amando-o e não ensinando-o.

Wednesday, November 09, 2005

no meio de nós

Começou ontem a Audição Pública “Por uma sociedade segura e livre de armas”, organizada pela Comissão Nacional Justiça e Paz. Em cinco sessões até Maio próximo, esta voz da Igreja far-se-á ouvir para pôr em evidência que a cultura da violência está aí no meio de nós e que as guerras são pouco mais do que a radicalização de um quotidiano com muitas violências tornadas triviais. A luta pela restrição da posse e uso de armas é uma luta pela paz. É desse lado que estão os cristãos, inequivocamente.

Monday, November 07, 2005

urbanizar a evangelização

Há quem viva na permanente nostalgia de uma quietude rural em contraste com o ruído, a agressividade e o anonimato da vida urbana. A verdade é que as cidades são lugares de cosmopolitismo, de pluralidade e confronto, de dinâmica cultural e de intensa experimentação. Com todos os seus defeitos, e são muitos, é nas cidades que se inventa o futuro. Seria, por isso, um lamentável equívoco se pensássemos a evangelização da cidade a olhar para trás, contra aquilo que as cidades são. É na cultura urbana que tem que mergulhar a evangelização da cidade. No risco, portanto, e sem a protecção da sombra do campanário da aldeia.

Friday, November 04, 2005

trip

Há quem se refugie na paz interior para responder à conflitualidade à sua volta. Com estratégias de silêncio e de controlo emocional resistem ao impacto desgastante que os pequenos e grandes conflitos do dia-a-dia provocam. Conheço o valor do silêncio mas sei que muitas vezes ele não é mais que táctica de fuga à realidade. Anseio pela serenidade de espírito mas sei que ela não é verdadeira se camuflar a demissão de transformar a vida. Definitivamente a paz não é a ausência de conflitos mas o fruto de uma relação adulta com eles.

Wednesday, November 02, 2005

a irmã morte

Demos à morte um lugar esquisito nas nossas sociedades desenvolvidas. Escondemo-la para não nos darmos conta das nossas fragilidades. Banimo-la do nosso convívio para podermos continuar a enaltecer os corpos saudáveis, frescos e jovens como modelos. Ao mesmo tempo, trivializámos a morte em massa que as imagens da guerra ou da fome trazem consigo. Se este dia dos mortos servir só para uma fugaz memória de quem amámos, teremos falhado uma das mais importantes conversões de que precisamos: a que coloque, sem medo, a morte no centro das nossas vidas.