Wednesday, March 31, 2004

o 11º mandamento

Há um novo mandamento no ar: “não negociarás”. Tão imperativo como os das tábuas de Moisés. Mas, convenhamos, muito menos transformador. No novo mandamento há dogmas implícitos: esmagarás os maus, não duvidarás por um único momento da nossa superioridade moral, não te abrirás aos motivos da revolta dos outros. E, lá no fundo, há um contra-mandamento: “matarás justificadamente”. Neste tempo de novos dogmas, importa regressar ao sentido revolucionário do primeiro dos mandamentos, que nunca proibiu nada a não ser o desamor.

Monday, March 29, 2004

a ponte dos deveres

Inventámos uma cultura de direitos em que não cabe uma cultura de responsabilidades. Sermos autónomos, crescidos e emancipados exprime-se em termos “direito a”. É uma cultura cívica pobre, feita sobretudo de oposição a alguns poderes, mas sem sentido de comunidade. Foi a fragilidade desta construção que ruiu na sentença sobre a ponte de Entre-os-Rios. A responsabilidade é o pilar fraco das nossas relações sociais. Desgraçadamente, à custa do choro dos vivos, é a memória da morte que nos convoca, uma vez mais, à reinvenção de formas mais avançadas de civilidade. Em que os deveres sejam emancipadores e não opressores.

Friday, March 26, 2004

aprendizagem, sempre!

Sabemos pouco. Diante da complexidade das coisas, poucos e poucas de nós temos o impulso de aprender mais sobre elas. É fácil refugiarmo-nos no temor do misterioso e pintar a nossa preguiça de conhecer com desabafos como "é tudo muito complicado" ou "eles lá sabem dessas coisas". Ora, nenhuma preguiça mentirosa é admissível. Temos que saber mais. Temos que assumir, ao longo de toda a vida, o mandamento de aprender a aprender. E de converter, dia a dia, esse mandamento em acção transformadora. Aprender a aprender e conhecer para transformar: ora aí está um bom mote para um plano pastoral da Igreja!

Wednesday, March 24, 2004

no tempo do mal

Depois do atentado de Madrid, adensou-se o Mal. O Mal com o nome de terror, que assassina com gozo. O Mal com o nome de mentira, que manipula sem pudor. O Mal com o nome de anátema, que reduz tudo a uma violência supostamente necessária entre nós e os outros. Neste tempo do Mal, feito de terror, de mentira e de “por-nós-ou-contra-nós”, espera-se dos cristãos um testemunho de serenidade que não seja piegas, um testemunho de apego à verdade sem transigência, um testemunho de tolerância que não seja capitulação. Se não encararem o atentado de Madrid como um desafio, os cristãos arriscam-se a passar, pecaminosamente, ao lado da História.

Monday, March 22, 2004

de novo

O apelo à renovação não tem que ter cores e intencionalidades cristãs. As festas pagãs da Primavera sempre tiveram essa chamada à reconstituição da vitalidade e à transformação da morte em vida nova. Agora que começa o tempo da Primavera, em que desabrocha de novo a expectativa de que a tristeza não será definitiva, há que ter a humildade de acolher dos não crentes essa renovada abertura, de comungar com todos os outros do mistério da vida a renovar-se e de o fazer sem a arrogante convicção de que “nós temos razão e eles cá hão-de vir ter”. A humildade é um dom para levar a sério.

Friday, March 19, 2004

ao longe

Não há grande vestígio da importância do carpinteiro José no crescimento do seu filho Jesus. Não era homem com prestígio social que desse de herança ao filho. Não consta que tivesse feitio autoritário que impusesse ao filho. Não apareceu ao lado do filho nos momentos mais espectaculares da sua prestação pública. Não estava lá, quando o filho foi assassinado. Numa História que sempre enaltece os heróis e os bravos guerreiros, José passa despercebido. Talvez seja isso que vale a pena celebrar no dia de hoje, dia de S. José, o operário.

Wednesday, March 17, 2004

na margem

“Mesmo numa sociedade mais decente do que esta, eu faria sempre parte da minoria”. Não foi com desencanto nem com acidez que Nanni Moretti nos deixou a consciência desta condição. Ser maioritário é uma tentação. Na vida política como na experiência crente. Tentação, sim: porque o preço de radicalidade e de firmeza de convicções que se paga por ser maioritário é demasiado. De que vale ser maioritário se isso hipotecar a capacidade de transformar?

Monday, March 15, 2004

subitamente

De repente, uma bomba. De repente, tudo perdeu sentido. O fluir da vida, os tiques e as rotinas, as preocupações e os projectos, tudo estilhaçou naquela carruagem de comboio. Estilhaçou ali e estilhaçou igualmente por toda a parte. Explodiram pessoas, explodiram regras e instituições. Explodiu sobretudo a confiança de que a um dia se segue sempre outro dia. E isso é que é terrível. Como ser crente diante disto?

Friday, March 12, 2004

as provas

A discussão sobre as provas da existência de Deus é ridícula e inútil. Reduz o divino a um corpo e reduz a existência àquilo que é palpável. Deus não existe assim. Existe no sublime de um quadro de Van Gogh. Existe no irrepetível de uma descoberta científica. Existe no incompreensível gesto de carinho para com um pobre. Existe na disponibilidade para ouvir. Existe no sorriso misturado com lágrimas da mulher magoada. Existe no grito de revolta do despedido sem horizontes. Deus existe. Muito mais do que os nossos olhos vêem.

Wednesday, March 10, 2004

a tentação

Foi com poder e com deslumbramento que o Diabo o tentou. Ele resistiu e respondeu-lhe sempre à letra. Mas talvez o Diabo não tenha usado a estratégia mais certa. Hoje, teria seguramente mais sucesso se recorresse à mais eficaz das tentações: desistir. Para quê investir esforço e tempo no que dificilmente será recompensado? Para quê desgastar-se e sofrer para depois não ter abraços nem promoções? Não é tentador desistir? Não é tentador abdicar da luta e remetermo-nos à serenidade do nosso canto? Só não o é para aqueles que teimam em ouvir um sussurro que acompanha essa promessa de tranquilidade feliz. É um sussurro frio e irónico que diz “se me adorares”…

Monday, March 08, 2004

memorial

Neste dia, eu recordo aquelas que lutaram por direitos e foram olhadas como histéricas. Neste dia, eu recordo aquelas que se indignaram por se que se indignaram por serem violentadas e agredidas e foram rotuladas de mal-agradecidas. Neste dia, eu recordo aquelas que roubaram pão para os seus filhos e foram presas por atentado à propriedade. Neste dia, eu recordo aquelas que recusaram a hipocrisia do mito da “fada do lar” e foram consideradas perigosas. Neste dia, eu recordo aquelas que quiseram sentir prazer e foram consideradas pecadoras. Neste dia, eu recordo-as. E peço-lhes perdão.

Friday, March 05, 2004

perguntas

Dizem-nos que perguntar porquê é próprio das crianças. Será. Desde que com isso não se queira insinuar que querer saber porquê é uma infantilidade imatura e rabujenta. Para que nos aceitem como adultos responsáveis e sensatos, prescindimos vezes sem conta de nos interrogarmos e de pormos em causa a realidade que está. Preferimos a quietude podre dos “consensos abrangentes” à incomodidade da tensão e da discordância. Mas é a questionar os consensos estabelecidos, é a interrogar tudo o que é tido como óbvio que crescemos. Se então nos chamarem crianças teimosas é bom sinal...

Wednesday, March 03, 2004

diz-se

Precisamos de lavar as palavras, de as descontaminar. Construímos, com as palavras que usamos, uma representação do mundo, uma forma de vida. Demasiadas vezes, usamos, sem nos darmos conta, a linguagem da guerra, do poder ou da discriminação. As paisagens humanas que as nossas palavras enunciam são frequentemente feitas de agressividade, dominação ou indiferença. Precisamos de estar mais atentos ao que dizemos e ao que silenciamos. Precisamos de ser capazes de despoluir a nossa linguagem, de lhe retirar o pó e o fumo que a envolvem e de evidenciar, para os outros e para nós próprios, as relações essenciais que ela transporta consigo.

Tuesday, March 02, 2004

o sentido da vida

“Tenho feito da minha vida uma luta contínua contra a minha própria indiferença”. Bono Vox, líder dos U2, testemunhou desta forma que o sentido da vida não se compra ao quilo nem se recebe por herança patrimonial, biológica ou confessional. O sentido da vida não é um privilégio dos crentes, dos iluminados ou dos confiantes. Não, o sentido da vida é o modo-de-ser dos disponíveis, a pedagogia permanente dos que se recusam a aceitar o fatalismo das hierarquias de todos os tipos. O sentido da vida ganha-se na luta diária contra a distracção do que é verdadeiramente essencial. O sentido da vida está nos outros e, como dizia Pessoa, essa coisa é que é linda.