Friday, May 29, 2009

périplo

Mais do que a história, a erudição ou a paixão cosmopolita, o que me fica a mim, mais que tudo, deste livro é o combate contra a arrogância na leitura das histórias múltiplas das gentes do Mediterrâneo. Não há em nenhuma das páginas a tentação de enveredar pelo estilo “se o Mediterrâneo fosse um mar a sério…” glosado por quem faz por estes dias da sua visão do país e do mundo a única verdadeiramente séria e que deslegitima todas as demais. Enveredar por esse caminho seria aliás não entender nada do que é, e sempre foi, o Mediterrâneo. Ao contrário, este livro prefere apagar os pré-juízos dos autores e curvar-se diante da construção geológica da realidade, vinda da origem dos tempos, na Mesopotâmia, até hoje. Sendo um acto de cultura, este livro é assim um acto político. Porque faz escolhas fundas e claras. Sou dos que pensam que a verdadeira forma de discutir a Europa é discutir o que ela fez de melhor e pior no mundo e o que o mundo espera que ela faça agora. Agradeço ao Miguel Portas por não ter abdicado de discutir assim a Europa como Atlântida de muito mundo no nosso tempo.

Wednesday, May 27, 2009

novos

João Salaviza no cinema, Valter Hugo Mãe na escrita, Miguel Moreira na dramaturgia - nomes de gente que está a levantar a geração dos quinhentos euros. A Palma de Ouro em Cannes ou o Prémio José Saramago são o outro lado de um horizonte de penumbra que marca o dia-a-dia dos/as muitos/as que não têm nome e só contam (às vezes) para as estatísticas. Este país não é para novos.

Monday, May 25, 2009

silêncios

Não me consta que a Associação Cristã de Empresários e Gestores se tenha pronunciado sobre as declarações acintosas de Belmiro de Azevedo sobre a situação na Auto-Europa. Considerar um escândalo que haja gente que não quer trabalhar ao sábado - mesmo que não seja de todo isso que os trabalhadores reivindicam, mas apenas que o trabalho ao sábado seja pago como a lei impõe que seja - não merece qualquer leitura crítica à luz da Doutrina Social da Igreja?

Friday, May 22, 2009

bénard

Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana.

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no fundo não creiamos
mas não lutamos já firme e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

(...)

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
'meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'

Ruy Belo, 1969

Wednesday, May 20, 2009

o tigre de burma

A bravura dos frágeis sempre foi o pavor dos tiranos. Aung Aan Suu-Kyi, 63 anos, birmanesa, fez da sua vida um combate não violento contra a ditadura que governa com mão de ferro o seu país desde 1962. Por isso passou 14 dos últimos 20 anos da sua vida em prisão domiciliária. Agora vai ser julgada por um tribunal fantoche sem as mínimas garantias. Todos/as os/as que combatem pelos direitos humanos estão a ser julgados/as com ela. Os que, com o seu silêncio cúmplice, dão as mãos à junta militar, são os/as únicos/as verdadeiramente culpados/as.

Monday, May 18, 2009

clareza

"Não mais banhos de sangue! Não mais confrontos! Não mais terrorismo! Não mais guerra! Vamos quebrar o círculo vicioso da violência. Construa-se uma paz duradoura. Que seja genuína a reconciliação. Reconheça-se o direito de Israel a existir. Reconheça-se que o povo palestiniano tem direito a uma pátria independente. Que a solução 'dois Estados' seja uma realidade. Deixemos que a paz se estenda a estes territórios, trazendo a esperança para as muitas outras regiões afectadas pelo conflito". (Bento XVI em Israel)

Friday, May 15, 2009

crises

Não, a crise não apareceu inesperadamente há meia dúzia de meses. Não, a crise não foi provocada pelo desnorte de uns quantos gulosos da finança. E não, a crise não brota do coração maligno de gente pecadora. Vale a pena relembrar, por estes dias, a noção de pecado estrutural e interrogar as causas do seu apagamento no discurso público da maioria dos/as crentes.

Wednesday, May 13, 2009

teste de ferro

Em muitos países, aumentaram nos últimos meses as oferendas à Caritas. O teste à solidez de uma relação de amor faz-se nos momentos de tensão e não nos momentos de acalmia. Também o teste à solidariedade se faz nos momentos de crise e de escassez e não nos momentos de abundância. Definitivamente, o racionalismo individualista do homo economicus mostra toda a sua fragilidade como pressuposto das vidas concretas.

Monday, May 11, 2009

de longe, de muito longe

É fácil ser-se contra os imigrantes. É popular. E é estúpido. Criminalizar os imigrantes ilegais ou reduzir quotas de imigração que nunca foram aplicadas são expressões de tacanhez política e de pequenez humana. Por isso é tão importante que haja gente que dê voz pública à denúncia de que "o carácter excepcional e oficioso dos mecanismos de regularização, a exigência de visto de entrada e o rotundo fracasso da política de quotas têm alimentado uma bolsa de indocumentados/as, que neste momento serão de mais de meia centena de milhar" e de que "estas práticas e políticas em nada favorecem a inclusão dos/as imigrantes na sociedade portuguesa, contribuindo, pelo contrário, para o crescimento trabalho ilegal, para a desumanização das relações de trabalho e para acentuar as desigualdades sociais."

Friday, May 08, 2009

blasfémias

Gente insuspeita de propósitos subversivos põe uma pedra tumular sobre aquela que foi canonizada como a doutrina única sobre a economia: "a direita dizia que os mercados se regulam por si, se ajustam por si, que se houver um problema os mercados arranjam-se por se e muito rapidamente"... Afinal esses dogmas de fé liberal não foram senão uma “luta de classes contra os pobres” feita pelas instituições financeiras, que transferiram os rendimentos da “base da pirâmide para o topo”. Há pouco tempo, isto seria blasfémia, só purificável pelo fogo da marginalização. Mas nem Stiglitz é Joana D'Arc nem o altar neoliberal purifica mais o que quer que seja.

Wednesday, May 06, 2009

pandemias

Em tempo de alertas cíclicos contra pandemias anunciadas, há quem insista em lembrar que 90% dos recursos afectados ao estudo de doenças incidem sobre 10% da carga de doença a nível global. Essa discrepância é o rosto frio da indiferença para com as pandemias do sul, irmã gémea da extrema mediatização das pandemias do norte. Mesmo na morte, há ricos e há pobres.

Monday, May 04, 2009

the thin red line

A linha da violência física não pode ser ultrapassada - à vertigem da destruição do inimigo temos que ser capazes de sobrepor a superioridade da argumentação entre adversários. Mas não pode igualmente ser ultrapassada a linha da violência social - à soberba que dilacera as sociedades com a pretensão de as purificar e corrigir urge contrapor a humildade de envolver as sociedades nas mudanças. Lembremos sempre Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento; mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem"

Sunday, May 03, 2009

saudades

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...
Boa noite. Eu vou com as aves!

Eugénio de Andrade