as coisas sérias

É a festa dos loucos. É a exaltação do riso, do burlesco ou mesmo do retrato chocante. Este gozo que põe a nu a fragilidade das coisas sérias vem do confim dos tempos. E nele aprendemos uma coisa essencial: que há uma diferença clara entre o sagrado em si e a idolatria taquenha que inventamos para o que nunca foi senão mundano. Ai dos que, do alto da sua sisudez dominadora, olham a transgressão da festa como demoníaca. Porque nunca serão capazes de reconhecer a liberdade do riso de Deus.

optar

Podemos fazer as pazes. Ninguém faz parte de um qualquer “eixo do mal” ou de um qualquer “mundo do bem” para todo o sempre. Temos impulsos de agressividade e de morte? E então? Não temos também competências para potenciar o carinho, a ternura e o cuidado? Não temos também capacidades para aprender a resolver os conflitos de modo pacífico e a transformar as tensões em crescimento? Um Deus que confia plenamente na nossa liberdade é o mais forte dos estímulos a que assumamos por inteiro a escolha entre o uso dessa liberdade para matar e destruir ou para amar e cuidar.

real idealismo

Com desdém, é costume catalogar os que defendem intransigentemente a paz como “idealistas”. Mas esse desdém é sinal de má consciência. Porque os que a si mesmos se reservam a excelência e o rigor do realismo defendendo a inevitabilidade das guerras e a fatalidade do agravamento do fosso entre pobres e ricos, esses são afinal os verdadeiros idealistas. São eles que idealizam a espiral da violência incessante. São eles que idealizam a conservação e a negatividade. Que tremenda falta de realismo, que tremenda falta de rigor!...

é possível

“A guerra e a violência não são uma fatalidade biológica. Podemos pôr fim à guerra e aos sofrimentos que ela acarreta. Não com esforços isolados mas levando a cabo uma acção comum. Se cada um de nós pensar que é possível, então será possível. Se não, nem valerá a pena tentar. Os nossos antepassados inventaram a guerra. Nós podemos inventar a paz. Todos nós, cada um em seu sítio, temos que cumprir o nosso papel.” Este é o desafio da Declaração de Sevilha, adoptada pela UNESCO em 1986. Desafio cada vez mais premente, a cada dia que passa. Para todos, e para os cristãos em especial.

vertiginosa coragem

Deus aparece em muitas vidas quando elas se fragilizam. Conheço agnósticos de sempre que se abriram ao Deus dos místicos quando a morte lhes falou com nitidez. Conheço gente indiferente que procurou intensamente o divino quando a doença ou a violência puseram em evidência a sua pequenez. Conheço ateus militantes que acolheram a dúvida perante o choque da bondade plena e gratuita de uma comunidade crente. Admiro muito essas pessoas. Não por se terem convertido. Mas pela grande coragem da abertura ao avesso do que sempre haviam sido.

bolkestein

Na véspera de o Parlamento Europeu debater a directiva sobre a liberalização dos serviços, vale a pena os cristãos pensarem o que tem a condição crente a ver com a mobilidade das pessoas e os seus direitos. A dignidade não tem fronteiras nem é uma variável do jogo do crescimento económico. Quando o objectivo de "transformar a Europa, até 2010, no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo" volta a ser notícia, conviria que os cristãos soubessem dizer publicamente de que critérios não estão dispostos a abdicar no processo de construção europeia.

infantário

A Deus não ofende quem quer. São os homens que se melindram por palavras e por gestos de outros homens. Só isso. Quando, por estes dias, oiço dizer que com o sagrado não se brinca fico com a impressão de que o medo do castigo dos deuses, tão arreigado à severidade do Antigo Testamento, ainda prevalece. E quando me dizem que todas as crenças têm que ser respeitadas soa-me a tacticismo político e não a genuíno respeito pela fé dos outros. Deus, esse, está seguramente a rir-se destas nossas fraquezas.

munique

Talvez seja preciso que um realizador consagrado de Hollywood filme o terrorismo e o contra-terrorismo para se dessacralizar a história da violência boa contra a violência má. Apaziguamento cobarde ou capitulação traidora, eis como se manda avaliar a condenação do olho-por-olho-dente-por-dente. Talvez seja preciso que haja óscares, posters e muito glamour para se aceitar o convite da serenidade e da decência. Talvez seja preciso um êxito de bilheteira para aceitar que a brutalidade nunca é senão brutalidade.

êxodo

A narrativa do êxodo faz parte do imaginário do povo cristão. A provação do deserto antes da terra prometida é, de algum modo, fundadora do modo de ser cristão. É por isso estranho que o êxodo dos náufragos da globalização, a quem a livre circulação dos capitais roubou um lugar no mundo e um sentido para a vida, mereça tanta indiferença aos cristãos. Mais facilmente nos queixamos da ameaça dos estrangeiros à nossa estabilidade do que ajudamos a abrir o mar para que passem para o lado seguro da vida, onde vivemos.

herético

Jesus passou a vida a desafiar os cânones intocáveis do poder e da religião do seu tempo. Não pelo gozo frívolo de pôr tudo em causa, mas pela convicção funda na superioridade da pessoa sobre a lei. Por isso, mostrou um incontido amor pelas pessoas concretas ao mesmo tempo que foi impiedoso para com os artifícios da opressão. Não foi a invocação do respeito pelas normas que lhe importou mas sim a cuidadosa atenção aos homens e mulheres. Neste tempo de tantas cautelas com o perigo de heresias, o regresso a Jesus traz a frescura e a rebeldia como resposta.

sempre

"O amor será sempre necessário, mesmo numa sociedade mais justa (...). Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e de ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha do amor concreto ao próximo (...). A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria 'só de pão' - convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano." Estas são palavras da Encíclica "Deus é amor", de Bento XVI. Não precisam de comentários nem de explicações.

qualquer um

Reflectindo sobre o mandamento primeiro do amor, Bento XVI, na recente Encíclica "Deus é amor", faz da parábola do bom samaritano um separador das águas: "enquanto o conceito de 'próximo', até então, se referia essencialmente aos concidadãos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel (...), agora esse limite é abolido. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstracto, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático, aqui e agora." A comunidade católica ouvirá correctamente este recado?