Wednesday, June 29, 2005

forças de bloqueio

Com três anos de atraso, veio o pedido de desculpas. Que a vida tinha sido madrasta, que a vertigem do fácil e do bonito tinham imposto a tirania do “tudo e já”. Que a lei impiedosa do reconhecimento social e do prestígio tinham pesado mais do que a paciência de construir, pouco a pouco, um modo denso de ser. Valeu mais o cintilante postiço do momento do que a autenticidade exigente. Três anos depois do silêncio veio, com dor e com coragem, a confissão de tudo isto e o pedido de perdão. Corre hoje um fio de ar fresco na janela do futuro.

Monday, June 27, 2005

redução de danos

Como uma vergastada injusta. Foi a isso que souberam as palavras duras de Mateus: “Quem encontrar a sua vida há-de perdê-la”. Anda por aí uma data de gente sem saber a que referências se agarrar, ao sabor dos ventos da sedução, do misticismo ou da riqueza sem esforço. Gente de vida perdida e que precisa urgentemente de se encontrar, de ter um sentido, gente que merece muito mais do que navegar à vista no mar tumultuoso dos problemas de cada dia. Tivesse Mateus experimentado a pequena vitória de resistir ao chamamento de mais uma dose de heroína, tivesse ele saboreado o triunfo da pequena reconciliação familiar e certamente não teria sentenciado que “quem encontrar a sua vida há-de perdê-la”. Para tanta desumanidade aparente só há uma desculpa: a de o próprio Mateus ter, com coragem, apontado a conversão radical como alternativa verdadeira: “quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la”. Mas nunca se cometa a crueldade de estabelecer: “ou isto, ou nada”.

Friday, June 24, 2005

nosso

Gritou-se que Portugal é nosso, destilou-se fel contra os imigrantes, acusados de serem agentes de criminalidade. Pintou-se um país a branco e preto, dividido entre herdeiros da lealdade à pátria e infiéis. Nada disto pode ser indiferente aos cristãos. E sobretudo deve-nos preocupar saber quanto deste discurso se faz, em surdina (ou não), nas nossas paróquias ou nos intervalos das reuniões dos nossos movimentos apostólicos. É que já não basta o testemunho inestimável dos que tecem a tolerância em cada minuto e em cada gesto. São precisas palavras. Palavras fortes e claras.

Wednesday, June 22, 2005

a estranha força

A morte do velho militante trouxe à sociedade portuguesa uma onda muito funda de nostalgia do tempo das convicções fortes. Diante do testemunho de uma vida entregue totalmente ao cumprimento de um sonho, não houve quem não se sentisse interpelado por essa estranha força que a confiança pode ter na vida de um homem. Teria sido fácil falar de obsessão, de rigidez dogmática ou de fundamentalismo. Que se tenha enaltecido antes a força das convicções é um sinal dos tempos.

Monday, June 20, 2005

em fuga

Fugir, por medo, é pôr em evidência a negação total da humanidade. Nas estatísticas frias da diversidade humana, a condição de “gente em fuga” está certamente nos primeiros lugares. Gente a quem a guerra obriga a perder todas as raízes. Gente a quem a perseguição por causa da fé força a deixar tudo, de repente. Gente que foge da fome que as-secas-que-nunca-havia trouxeram para ficar. Vivemos num mundo de fugitivos. Mas estamos longe de viver num mundo de refugiados.

Friday, June 17, 2005

segunda chamada

Vinte anos depois, sermos membros da União Europeia merece ser avaliado. De muitas maneiras. Há quem o faça pelo balanço líquido entre ganhos e perdas acumuladas. Há quem o faça comparando estilos de vida antes e depois de 1986 e quem ponha de um lado autonomia abdicada e, do outro, presença alargada nas decisões que contam. Pelas diferentes aritméticas passam duas preocupações comuns: somos hoje mais solidários do que éramos há vinte anos? E temos mais esperança no futuro do que tínhamos então?

Wednesday, June 15, 2005

de luva branca

Às vezes há boas notícias. Os países mais ricos do mundo decidiram cancelar as dívidas dos países mais pobres do mundo. Muitos dirão que foi uma medida tardia e que muitos que entretanto morreram de fome foram um penhor insuportável dessa falta de coragem. Outros acrescentarão que não se pode falar propriamente de perdão: as dívidas são anuladas sob condição de cumprimento de códigos de comportamento queridos a quem gosta do perfume dos juros. Mas o que há mesmo de melhor nesta notícia é que ela vinga, de uma vez por todas, a memória dos que foram ultrajados pelos senhores da ortodoxia económica que bradavam, há muito pouco tempo, contra o infantilismo irresponsável do perdão. Ora tomem!

Monday, June 13, 2005

populares

O aumento exponencial do número de santos/as tem um grande mérito: mostrar que eles e elas são pessoas comuns, que andam por aí anonimamente e que tocam directamente nas nossas vidas, tantas vezes difíceis e sem vislumbre de saída. O povo sábio sempre se deu bem com uma santidade feita à medida da gente comum e não dos ascetas sem mácula. Ser santo é mostrar como se faz o caminho certo. Ser santo popular é mostrar que esse caminho se faz sempre com o carinho do povo.

Friday, June 10, 2005

pedaço

Ser de um povo sem deixar de ser de todos os outros. Ser leal ao colectivo que nos acolhe sem deixar de acolher a riqueza de quem está para lá da fronteira. Estimar a nossa história mas sabê-la também contada por quem a viveu do outro lado. Gostar desta individualidade sem a mistificar de superioridade inigualável. E, por isso, comemorar aqui a humanidade inteira, neste dia em que lembramos uma pequena parte dela.

Wednesday, June 08, 2005

sísifo

Por mais que insistamos, nunca nos havemos de habituar a levar a sério a advertência de Jesus: “Eu não vim chamar os justos mas os pecadores”. O esforço que fazemos para ter gente nas igrejas, para enquadrar religiosamente os jovens e os velhos, o tempo de perdemos em reuniões da paróquia, do movimento, do secretariado para, no fim, ser exactamente aquele que, grosseiramente se pôs de fora, que é o preferido do Senhor? Gastamo-nos enquanto outros se divertem. E no fim é a nós que Deus diz: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício”! Às vezes, ser cristão é complicado. Ou seremos nós que não percebemos a sua simplicidade extrema?

Monday, June 06, 2005

tontices

A essas expressões de crença para além de toda a objectividade costumamos chamar tontice. Ou até delírio. Abraão, velho de 90 anos, delirou tontamente com a profecia de se vir a tornar pai de muitas nações. Como poderia isso ser? E, no entanto, com a sua fé inquebrantável, mostrou que tontos somos todos nós os que razoavelmente descremos dessas possibilidades impossíveis. Neste tempo de realismo rasteirinho, precisamos muito de quem nos mostre que há projectos de vida que não cabem nos limites do razoável. E que há outra força, para além da da razão, que empurra o mundo.

Friday, June 03, 2005

aqui

Quem é o teu próximo? À pergunta, talvez por ser infelizmente banal, fomos encontrando respostas cada vez mais sofisticadas. Dando conta de uma proximidade construída, querida e não resultado de mera imposição física. E, no entanto, é nos vizinhos, nos do andar ao lado ou da casa em frente, que se concretiza o primeiro rosto do próximo. A família humana fraterniza-nos com quem está do outro lado do mundo. Mas se não conseguimos tecer laços fraternos com os nossos vizinhos, o resto é pouco mais que retórica de camuflagem.

Wednesday, June 01, 2005

os infantis

Neste dia mundial da criança vamos ser lembrados do escândalo da fome e dos maus tratos a que são sujeitos milhões de crianças no mundo. Vamos voltar a saber que das crianças soldado, das crianças trabalhadoras, da prostituição infantil. E haverá espaço para a fantasia? Contar-se-ão mais histórias logo ao adormecer? Brincar-se-á mais ao faz-de-conta esta tarde? Ver-se-ão com uma inesperada corrente de ar, hoje, as fotografias do futebol de rua, dos clubes de garagem ou do primeiro acampamento?