Wednesday, September 29, 2004

guerra contra a fome

O Presidente brasileiro propôs na Assembleia Geral das Nações Unidas um programa mundial de erradicação da fome, usando como instrumento um imposto sobre comércio de armamento. Vale a pena pensar um pouco sobre isto. Sem embarcar no cinismo fácil dos que, comodamente, afirmam que é só mais um pedaço de retórica, nem na ingenuidade dos que acham que, por beneficiar os pobres, é inevitavelmente bom. Contra o cinismo, é importante dizer que a guerra contra a fome é o bom combate a travar mundialmente. Contra a ingenuidade, é importante dizer que combater a fome sem mudar as políticas é dar um peixe sem ensinar a pescar. Por onde passa a reflexão dos cristãos a este propósito?

Monday, September 27, 2004

a mão que embala a máquina

Os computadores falharam redondamente na colocação dos professores e houve que completar o processo à mão. Qualquer coisa de parecido tinha acontecido na Florida, nas anteriores eleições americanas, com a necessidade de recontar manualmente os milhões de votos que as máquinas se mostraram incapazes de decifrar. A incapacidade das máquinas dá-nos um crescente sentimento de fragilidade. Mas dá-nos também a consciência de que é nossa, e só nossa, a decisão que verdadeiramente conta. E, por isso, a responsabilidade de a assumir.

Saturday, September 25, 2004

as time goes by...

Um gesto de perdão não é o mesmo que uma opção pelo esquecimento. O mais fácil é deixar que o tempo passe pelas indignidades e pelo mal, na expectativa de que ele se encarregue de os apagar da nossa memória. Perdão é outra coisa. É regressar a esse mal, trazer à tona essa indignidade na sua plenitude, pôr no centro o sofrimento que isso já provocou e, contra todas as recomendações da normalidade, querer religar o que ficou quebrado, querer reconstruir as relações que ficaram envenenadas, querer devolver ao que foi brutalizado horizontes de futuro apetecíveis. Esquecer é um comodismo. Perdoar é um acto de grande coragem.

Wednesday, September 22, 2004

o bom combate

A fronteira entre a paz e a guerra é muito estreita. Países em que acordos de paz vieram pôr termo a guerras sangrentas experimentam agora níveis de violência doméstica altíssimos, taxas de homicídio violento explosivas, formas de crispação política ou social gravíssimas. Esta é mais uma razão por que ser pela paz não é apenas ser contra a guerra. Ser pela paz é hoje, cada vez mais, ter disponibilidade para combater firmemente as razões profundas que dão suporte a que a vida quotidiana seja um campo de batalha em que a exterminação do outro, física ou simbólica, é a lei.

Monday, September 20, 2004

o truque

Este é um tempo em que a falta de alternativas é apregoada como se de uma espécie de inevitabilidade se tratasse. Governante que pretende dar ares de credibilidade não se cansa de proclamar: “Não há alternativa a esta política”. Ideólogo que quer ver aceites como correctas as suas interpretações da realidade, afirma convictamente que não há alternativa às suas perspectivas. E, no entanto, é só disso que se trata: de perspectivas pessoais, de visões particulares. Dogmatizá-las como únicas é um truque e um exercício dissimulado de poder. Que esse malabarismo tenha tanto eco nos nossos tempos diz bem da falta de confiança que tolda as nossas visões do horizonte.

Friday, September 17, 2004

história de não embalar

Fiquem agora com uma história para crianças. Uma história com um príncipe e uma princesa, pois claro. Mas aquele era um príncipe diferente. Aquele foi escolhido numa competição a ver quem se despojava mais plenamente dos seus bens. E ganhou um rapaz muito rico que deu o seu grande tesouro aos pobres, os seus coches e os seus cavalos aos seus aios, as suas vestes de púrpura aos maltrapilhos e as salas majestosas da sua casa senhorial aos que vadiavam pelas ruas. Quando se despojou de tudo, este príncipe casou-se com uma bela princesa. Quanto menos bens ocupavam as suas preocupações, mais espaço havia para o amor intenso pela princesa. E, sem nenhuma dificuldade, viveram felizes para sempre.

Wednesday, September 15, 2004

coisas de crianças

Durante muitos anos, talvez para sempre, os meninos da Ossétia do Norte vão olhar a escola como um pesadelo. Durante muitos anos, talvez para sempre, eles vão olhar desconfiados para qualquer homem ou mulher desconhecidos, com a certeza de que o mal absoluto pode saltar-lhes das mãos de repente. Durante muitos anos, talvez para sempre, esses meninos gritarão de noite e olharão, com nevoeiro nos olhos, a fotografia daquele outro menino que nunca mais voltou para jogar ao berlinde. Mas esses mesmos meninos, como todos os outros meninos da sua idade, vão continuar a acreditar que fazer as pazes é melhor do que a vingança bruta. Durante muitos anos. Talvez para sempre.

Monday, September 13, 2004

re-unir

Recomendam-nos, de maneiras várias, que sejamos razoáveis. E sermos razoáveis não é só resignarmo-nos aos poderes estabelecidos e não fazermos ondas. Não, é mais do que isso, é partirmos a nossa vida em três pedaços e separá-los completamente um dos outros. Agir no trabalho, falar nas reuniões e pensar na intimidade. Bem-aventurados os que recusam corajosamente essa razoabilidade. Bem-aventurados os que fazem o que dizem e dizem o que pensam. Com eles o Reino dos Céus fica mais perto de todos nós.

Saturday, September 11, 2004

o caminho da coragem

O terror é, cada vez mais, um ingrediente habitual da vida de muitos povos. A violência bruta tem-se tornado uma expressão quase normal da luta política, contra os Estados ou usada por eles. O desespero e o ressentimento são motivos conhecidos. Mas são-no também a afirmação religiosa ou a defesa de formas de civilização. Três anos depois dos atentados de Nova Iorque e diante do caminho que eles abriram à legitimação do terror, é urgente encontrar as fontes da paz justa. A do acolhimento, da humildade e da solidariedade.

Thursday, September 09, 2004

vemos, ouvimos e lemos (II)

Cortar a cabeça do inimigo e reduzi-la ao tamanho de um punho não é suficiente para algumas tribos índias da Amazónia se darem como plenamente vencedoras. O triunfo só é total quando os lábios do vencido são cosidos com um fio que dura para sempre. Nessa brutalidade simples, o que é muito claro é que a palavra é uma arma poderosíssima. Foi também isso que Jesus, e todos os que foram calados por falarem de um mundo realmente novo, nos mostraram. Definitivamente.

Monday, September 06, 2004

vemos, ouvimos e lemos (I)

O olhar pode mudar o mundo? Pode, sim. O modo como vemos, como seleccionamos e ordenamos factos, e sobretudo como visualizamos para lá do que existe, é o grande motor da mudança. É essa visão crítica do que está e essa visão fresca e desafiadora do que há-de vir que todas as censuras procuram reprimir. Os censores sabem que ver é quase sempre um impulso irreprimível para reclamar e para agir. E os poetas também o sabem. E sabem mais: sabem que não se vê só com os olhos. E que só o coração vê o que é verdadeiramente essencial.

Saturday, September 04, 2004

bilhete de identidade

Quem foi, na verdade, esse homem chamado Jesus? O grande público sabe muito pouco sobre ele. Há vazios grandes e surpreendentes naquilo que nos é dado conhecer pela versão canonizada da história bíblica. Ora, é trágico que muita gente ache que conhecer mais e com mais rigor o Jesus histórico, abrir a mente a outras fontes e narrativas não consagradas sobre a vida daquele homem é pôr em risco os fundamentos da fé cristã. Trágico sim, porque isso significa que para muitos a fé está associada a um mito histórico e que só ele é que a suporta. Os cristãos não crêem numa história mas no que está para além dela.

Wednesday, September 01, 2004

do lado de cima

Há um velho provérbio africano que diz: “Até que os leões tenham os seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão a glorificar o caçador.” A História tem sido invariavelmente a narrativa dos triunfadores contada por eles próprios. Por isso os colonizadores se apresentam como amigos dos colonizados, os senhores se apresentam como libertadores dos escravos, os homens se apresentam como simpatizantes da emancipação das mulheres. Também o cristianismo é posto, frequentemente, no lado vitorioso da História. Pobres vaidades para quem tem na cruz o seu ícone fundador…