Tuesday, June 29, 2004

fé aos pontapés

A febre futebolística que percorre o país trouxe-nos de volta o comércio das crenças. São jogadores com cromos de Nossa Senhora de Fátima como amuleto de sorte, são treinadores que transportam cultos marianos nas suas malas juntamente com manuais de táctica de contra-ataque, são todos aqueles que, envoltos em cachecois e em cerveja, juram a pés juntos que as mãos sem luvas do Ricardo foram guiadas por São Judas Tadeu. Os bispos falaram forte contra a corrupção no desporto. Falem ainda mais forte contra o comércio da fé.

Friday, June 25, 2004

de fora para dentro

Constroem-se centros paroquiais, erguem-se basílicas, edificam-se equipamentos diocesanos. Onde vai ficar a sede do movimento A? E o espaço para a irmandade B? A catequese, o coro ou a sala para a preparação para o baptismo não hão-de faltar. O que fica sempre a falta é o olhar de fora para dentro: pensar a Igreja como uma comunidade de serviço e não como uma estrutura de fixação de fiéis. Quando a prioridade passar a ser menos o espaço físico de acolhimento e mais a disseminação da presença pública, aí a Igreja terá mudado. A pensar na mudança da vida.

Wednesday, June 23, 2004

pra mudar

Não é difícil ser crente no meio de crentes. É quando nos irmanamos com colectivos sem matriz cristã, que trilham caminhos diferentes dos nossos para atingir a dignidade e a justiça, que o sentido da nossa pertença à comunidade dos filhos de Deus é posto em teste. É sem dúvida mais confortável juntarmo-nos todos na cidadela de Deus para contemplar à distância a Babel dos homens. Mas não foi para nos juntar que Jesus viveu, foi para mudar o mundo. E é para isso que cá estamos. Para nada menos que isso.

Monday, June 21, 2004

carimbar o sonho

A concentração de todos os holofotes mediáticos no futebol está a ocultar muitos problemas do quotidiano. Um deles é o atraso escandaloso na atribuição de vistos, pelas autoridades portuguesas, às famílias imigrantes no nosso país. É um carimbo, pouco mais. Mas imprescindível para que o sonho, alimentado ao longo de todo um ano, de terem férias nos seus países e regressarem tranquilos aos seus postos de trabalho se concretize. É um favor? É uma benesse? Não, é um direito. E um país que vive distraído da violação grosseira de direitos assim básicos no seu seio não tem legitimidade para reclamar a conversão de outros povos à bondade dos direitos humanos.

Friday, June 18, 2004

de arquinho e balão

Ter santos queridos pelo povo não por serem mártires ou carrancudos mas antes por serem casamenteiros ou protectores dos pobres é uma das fontes de riqueza do cristianismo. A vida casta e austera, o ascetismo ou o martírio, se despegados do coração do povo, podem dar santidade mas não fazem escola. Não creio que haja santos impopulares. Num tempo como o nosso, em que tantas vezes se invoca o bem do povo para justificar políticas assumidamente impopulares, a vida de S. Pedro, de S. João ou de Sto. António faz abanar as estruturas.

Wednesday, June 16, 2004

as bandeirinhas

O fenómeno das bandeiras nacionais à janela dá que pensar. Apesar de toda a manipulação de sentimentos e aspirações, apesar de todo o folclore barato, a adesão em massa ao simbolismo da bandeira evidencia um desejo: o de termos qualquer coisa como povo que nos dê orgulho. Que esse desejo seja materializado numa bola e numa baliza e não na decência da vida dos mais pobres, é preocupante. E não dá orgulho nenhum.

Monday, June 14, 2004

é a vida?

Começaram hoje os exames nacionais do ensino secundário. Há uma geração que vai jogar em escassos minutos o destino próximo de uma vida inteira. Quando as pautas forem afixadas, os risos e as lágrimas do costume terão outra dramaticidade. Os sonhos de uma carreira e os projectos de estilo de vida reduzir-se-ão a um ou dois algarismos. E a hierarquia de nomes por ordem de classificação será já carregada de sentido para a gente mais nova. É a vida, dirão os mais resignados. Não, a vida não é isto, respondo eu.

Friday, June 11, 2004

pecado grave

Daqui a dois dias haverá eleições para o Parlamento Europeu. E o que tem isso a ver com os cristãos? Tudo. A construção europeia é apenas uma escala em que se joga a questão de fundo que é a fidelidade dos cristãos ao primado do bem comum. A abstenção pode ser uma expressão de crítica. Mas o alheamento comodista de um esforço comum, esse é um pecado. Grave.

Wednesday, June 09, 2004

deus, pátria...

Amanhã é dia de Portugal. Houve um tempo em que se fez opressora a relação entre Deus e Pátria. Hoje é outro o desafio aos cristãos. Somos chamados a pensar o país como um teste à coerência da nossa condição crente. Somos convidados a olhar para Portugal como uma comunidade em projecto. Não há raça nem glória para aclamar. Mas há uma realidade do dia-a-dia para fraternizar.

Monday, June 07, 2004

com grades

Encontrei Deus na prisão. Estava nas lágrimas do homem com saudades da liberdade. Estava no entusiasmo da responsável pela encenação da peça de teatro com os presos. Estava no cuidado da avó cigana pelo bem-estar das mulheres daquela cela. As prisões podem ser lugares de Deus. Mas é Ele que é ultrajado em cada cela sobrelotada ou em cada cêntimo que não se investe na decência humana das comunidades prisionais.

Friday, June 04, 2004

o carinho da política

Gandhi falava da política como “gesto amoroso para com o povo”. A maior parte das vezes, as políticas deixaram de ter do povo uma imagem concreta, de carne e osso, com rosto, nome e sentimentos. O contributo das políticas para a felicidade das pessoas mede-se por indicadores abstractos como o PIB ou o rendimento per capita. As sociedades são complexas, pois claro. Mas a complexidade serve frequentemente de desculpa para a frieza. Precisamos de políticas rigorosas. Mas nem o rigor é anónimo nem a sensibilidade social pode ser um simples acrescento.

Wednesday, June 02, 2004

deus?

Para alguns, a contemplação da grande montanha ou da planura sem fim fala-lhes de Deus. Dispensam as provas racionais e palpáveis, basta-lhes o sobressalto do imensamente belo para crerem que Deus se revela assim. Mas a mesma grande montanha e a mesma planura sem fim estão, para outros, carregadas de memórias magoadas. Gente que foi castigada pelo agreste do frio da montanha ou pela secura da planície. E que não consegue ver beleza onde há experiência de dor. É esse o estatuto de Deus nas nossas sociedades plurais: onde uns sentem a ferida do castigo sem explicação, outros vêem o incomensuravelmente bom.