Monday, May 31, 2004

o quarto poder

Que diz o boletim meteorológico televisivo ao camponês transmontano? Que diz a informação diária sobre trânsito ao guardador de rebanhos do Guadiana? Que diz o noticiário sobre cotações em bolsa à desempregada minhota? Há um descompasso terrivelmente desrespeitador entre o que as pessoas precisam de saber e aquilo que lhes é dado ouvir. Esse descompasso tem um nome: é poder. E tem um contrário: chama-se cuidado.

Sunday, May 30, 2004

um pecado

A quinze dias das eleições europeias, a Europa é um tema ignorado ou longínquo para a grande maioria dos cidadãos. E, no entanto, há Europa nas nossas vidas a cada momento que passa: a Europa em que as empresas se deslocalizam e deixam rastos de desespero ou a Europa que nos estimula a cuidar dos direitos humanos, a Europa que se fecha aos imigrantes ou a Europa que privilegia a negociação à guerra. É uma tragédia que a Europa seja silenciada nestas eleições. Que devem os cristãos fazer? Certamente muito mais do que querer o cristianismo reconhecido na Constituição Europeia...

Wednesday, May 26, 2004

capitulação

O triunfo mais terrível da guerra é o da violência das armas sobre o poder das palavras. Mais do que um grupo ou um povo, aquilo que uma guerra, todas as guerras, arrasam é a civilização da palavra e a sua superioridade face à força bruta. Por isso, uma guerra, todas as guerras, são sinais de desistência: de quem prescinde do esforço da persuasão e dos argumentos e se convence que a força é um caminho inevitável. É por isso que a paz, a resistência e a esperança são irmãs.

Monday, May 24, 2004

o que faz falta

Durante semanas a fio, o casamento de Felipe de Bourbon e Letícia Ortiz foi prioridade das televisões e das revistas cor-de-rosa. Sabíamos há muito tempo que vinho da Galiza serviria de aperitivo, que vestido ia levar a senhora X, a que horas minutos e segundos passariam os noivos pela esquina Y, que prenda lhes daria o casal Z. Tudo foi esquadrinhado ao milímetro para que as massas embasbacadas se embalassem diante de mais um conto-de-fadas. Tudo menos a questão essencial: a da força do amor entre duas pessoas. Mas isso é socialmente supérfluo. Como se provou uma vez mais.

Friday, May 21, 2004

para muito longe

Com um humanismo sofrido, José Mário Branco (en)canta-nos: “Quem é que acorda esse país / quem deita fogo aos álibis / de quem pensa que o dinheiro / se gasta primeiro / que o amor?” Ouçamo-lo com muita atenção. Comovamo-nos e indignemo-nos. E, sobretudo, sintamo-nos chamados a uma conversão sem fim.

Wednesday, May 19, 2004

dissidência

Resistir é vencer. Conhecíamos a palavra de ordem de Xanana. Mas esquecêmo-la depressa. Pensámos que era um grito localizado. Mas enganámo-nos. E hoje, quando alguém nos recorda a urgência deste modo de pensar, temos que voltar a encarar de frente o que significa resistir. Diante das tentações sossegadinhas do prestígio, da riqueza, do triunfo solitário, há-de ser em nome da solidariedade e do bem comum que nos imporemos resistir. E só então perceberemos quanta verdade há na convicção de que resistir é vencer.

Monday, May 17, 2004

lá atrás?

O pior que poderíamos fazer diante das horríveis imagens das prisões iraquianas e dos maus-tratos a estrangeiros sequestrados naquele país, seria encará-las como excepções à normalidade, como actos isolados. Falar de barbárie normalmente atira-nos para trás no tempo, para algo que ficou “antes da civilização”. Mas o que mais arrepia e o que mais indigna é que é cada vez mais em nome da civilização que se institucionaliza a barbárie. A pré-história é hoje.

Friday, May 14, 2004

os sábios

Para tudo há comentadores: para a política, para a guerra, para a investigação policial, para o futebol ou até para o último episódio do Big Brother. Para tudo se procura a interpretação dos sábios e a sua palavra profética. Como se o puro conhecimento dos factos não chegasse para que a gente anónima forme uma opinião. A realidade, de tão complexa, tornou-se assunto para especialistas.

Wednesday, May 12, 2004

a caminho

A peregrinação é uma opção esquisita. Preferir o caminho à casa, a fadiga ao descanso, a busca à certeza, a súplica à compra, são escolhas contra a corrente. Tudo isto é estranho para a sociedade do nosso tempo. Alguns chamam-lhe resíduo do passado. Eu acredito que é um sinal de formas alternativas de viver.

Tuesday, May 11, 2004

ciência natural

Com que seriedade encaramos a angústia dos jovens que não encontram emprego estável? Que valor real damos à expressão dramática dos rostos das mulheres despedidas de mais uma fábrica de têxtil que fechou? Habituámo-nos a aceitar estas situações como normais. Encaramos como sérios os discursos que dão cobertura científica a este estado de coisas. Tudo se tornou natural e inevitável. Só a raiva surda de quem sofre é que fica por explicar.

Friday, May 07, 2004

ópios

Que têm os estudantes para festejar neste tempo de queimas das fitas? O que é que celebram euforicamente? Por que teimam eles em sair à rua exibindo alegria, quando os horizontes profissionais se fecham cada vez mais, quando o desinvestimento na investigação e na formação avançada atinge patamares inquietantes e quando o seu reconhecimento social é porventura mais baixo que nunca? Não, não há outro motivo para a festa que não seja a nostalgia antecipada de um tempo juvenil. Mas só isso. Talvez seja essa a razão pela qual o consumo de álcool seja tão necessário nestas liturgias. Às vezes, muito mais do que a religião, é a festa que é o ópio do povo.

Wednesday, May 05, 2004

(i)maturidade

Em muitos sítios deste mundo, os homens não são reconhecidos como adultos enquanto não lhes for vista a bravura de um acto de guerra. Só então passam a ser “homens de barba rija”, aceites como tendo a vocação de proteger os mais fracos e com capacidade de enfrentar com razão e coragem os chamados “verdadeiros desafios da vida”. Mas o uso da força está muito longe de ser símbolo de maturidade e sabedoria. Sábio verdadeiramente é o que tem a lucidez para construir acordos onde eles se afiguram impossíveis e para construir pontes onde o caminho parece completamente bloqueado. Enquanto os guerreiros forem modelo dos nossos heróis, é a sociedade no seu todo que se revela imatura.

Tuesday, May 04, 2004

fora de cena

Percorrem-se caminhos de paz, anónimos e desinteressados, e isso passa por ser normal. Ensaiam-se gestos e vozes de reconciliação e isso passa por ser desinteressante. Fazem-se compromissos corajosos pela justiça quando o razoável seria a vingança e isso passa por ser cobardia. Projectam-se estruturas de partilha de poder e de prossecussão do bem comum e isso passa por utopia e ingenuidade. A guerra que não aconteceu não é notícia.