embuste

A família de Jesus nunca foi um baluarte contra a mudança, nem um modelo harmónico e canónico de experiência familiar. Uma gravidez que causou naturais dúvidas ao pai, um filho que fugiu aos pais numa rebeldia de projecto convencido insuportável, a negação da família nuclear, no fim da vida, por quem ficou solteirão e se tornou marginal, tudo foi acontecendo e questionando a consistência modelar que o pó da história convenientemente fez tombar sobre a realidade. Que agora se venha invocar a família de Jesus para mais uma cruzada conservadora é apenas mais uma apropriação ideológica do que foi uma vida libertadora e dada a um único mandamento: o do amor.

ouvir (ii)

"A essência da fé é a dúvida. A minha fé não é menos consciente por ter muitas dúvidas." Esta é uma voz dissidente, que vai em contramão da ortodoxia das certezas e das verdades reveladas com contornos definitivos. Que faz da humanização máxima (o lugar das dúvidas fundas) o reduto da abertura ao mistério. Estas vozes são proféticas. nelas devia assentar uma catequese madura.

ouvir (i)

"A Igreja devia ser inconformada, mais atenta à vida das pessoas. Menos preocupada com miudezas morais. A moral da Igreja é, muitas vezes, uma loja de miudezas." Por estas e por outras, quem assim fala abandonou o sacerdócio. As vozes dessas experiências magoadas de quebra têm que ser cada vez mais ouvidas. Elas trazem avisos fundamentais. São dos poucos sinais de consciência crítica que ainda restam...

nascimento

Gastamos demasiadas energias a discutir a ortodoxia e pomos energia a menos no que é essencial: amemo-nos uns aos outros. Não foi uma lei, nem uma cultura, nem sequer um herói que nasceu esta noite. Foi um convite indeclinável ao amor. Feliz Natal.

convicções

Estou convencido de que Maria e José viajariam hoje num pequeno barco, com mais duas dezenas de migrantes, em busca de um sítio seguro para ter um filho. Estou convencido de que, à chegada, teriam a recebê-los vigilantes da fronteira, que lhes diriam não haver lugar para eles nas nossas sociedades ricas. Estou convencido de que os algemariam e os tratariam por "ilegais" nos jornais do dia seguinte. Estou convencido de que os expulsariam no avião mais imediato, rumo à sua terra de origem. Estou convencido de que, anos depois, os mesmos que os haveriam expulsado rezariam, cheios de circunspecção, ao Menino entretanto nascido.

ferramentas

Jantares de Natal que esgotam os restaurantes. Oferta de presentes aos que nos são mais queridos. E-mails e sms que entopem o espaço comunicacional. Tudo pode ser visto como desvirtuamento pagão e afastamento do sagrado austero. Mas talvez ali também desponte a antecipação de uma alternativa fraterna ao egoismo e às violências dominantes. O religioso não é uma esfera separada da vida trivial. E a construção da justiça e da fraternidade para com todos são os seus instrumentos mais límpidos.

o que é simples

"A teologia empenhou-se em explicar e complicou, mas aos poderosos convinha apoiarem-se em teologias e manipularam Niceias, Calcedónias, etc. Ao analizarem a anedota, sufucaram a gargalhada. Ao dogmatizarem o Mistério, mataram a vida. Ao analizarem as metáforas, trituraram o sentido. Afastaram Emanuel e afastaram-nos dele." Recados fortes de Juan Masiá para serem ouvidos e pensados neste advento. A coisa é tão simples quanto isto: vem aí aquele que nos traz boas notícias. Preparemo-nos.

como se fosse

O Papa lembrará no dia 1 de Janeiro que a paz é o estado próprio da humanidade como uma única família. E vincará que a solidariedade, a gratuidade, a justiça, a fraternidade são experiências densas de uma família que há que transpor, a cada dia que passa, para a experiência do género humano como um todo. Algo para ficar a pensar. Dia 1 de Janeiro voltamos a isto.

tratado de lisboa

Sintomático: a única coisa que os bispos portugueses sabem dizer sobre o Tratado de Lisboa é que ele refere a herança religiosa na Europa no preâmbulo. Por isso, e só por isso, é para eles um texto aceitável. Nem uma palavra sobre direitos sociais, nada sobre política de cooperação, menos ainda sobre protecção do ambiente. Isso é política, dizem. Os silêncios dos bispos também, digo eu.

os direitos humanos

A Igreja não pode pregar os direitos humanos fora dela, quando os não pratica no seu seio - disse-o um amigo. E disse bem. Só tem credibilidade para exigir o cumprimento internacional dos direitos humanos quem luta coerentemente por eles e não transige na sua aplicação dentro de portas. Em dia de gritar alto a indignação perante os regimes que espezinham os direitos, haja também lugar para a indignação pelas práticas atentatórias de liberdades fundamentais dentro da Igreja e que põem a Santa Sé no elenco desqualificado dos Estados que teimam em não ratificar alguns tratados básicos de direitos humanos.

alheamento

Mornamente embaladas na preparação da "festa da família", as comunidades cristãs vão passar ao lado da interpelação da cimeira Europa-África. Os desafios ao nosso modo de vida, a reflexão sobre a estrutura de pecado que é a protecção dos mercados europeus (contra os produtos e a mão-de-obra africanos), a consciencialização dos fantasmas e dos privilégios que marcam o olhar das nossas sociedades sobre África, nada disso vai ser prioritário para este advento. A comiseração e a ajuda continuarão a ser o cânone. Mudança, parceria e responsabilidade mútua, isso "é política". Fica à porta da sacristia.

aqui tão perto

"Com o objectivo de incrementar a consciência dos nossos cristãos e de contribuir para uma mudança substancial dos comportamentos, tendo em vista a protecção do ambiente que nos foi dado pelo nosso Deus comum, comprometemo-nos a intensificar os nossos esforços de educação cívica e as iniciativas concretas para proteger o ambiente e para reduzir o consumo de energia nas nossas áreas de responsabilidade e de influência". São palavras dos bispos europeus e africanos dirigidas à cimeira Europa-África. Ver bispos a falar sobre outras coisas que não a família, a prática dominical e a catequese é estranho aos olhos dos cristãos portugueses. A Europa (e a África) também fica longe da Igreja portuguesa...

alívio

Falemos do óbvio. Ontem houve peditório do Banco Alimentar contra a Fome (BACF). O amplo consenso social conseguido por esta instituição e pela sua abordagem do problema da pobreza é inquietante. Porque tem um reverso: a demissão da sociedade portuguesa do combate contra os mecanismos estruturais que geram fome e pobreza em Portugal. É preciso dar de comer a quem tem fome, já? Claro que é. E por isso a acção do BACF é estimável. Mas uma sociedade (e uma Igreja) adormecida(s), que descansa(m) a sua consciência num saco com um quilo de arroz e um pacote de esparguete, precisa(m) de ser confrontada(s) com a coerência dos seus propósitos últimos. Enquanto o voluntariado generoso no BACF for de mãos dadas com a ostracização da política e das escolhas colectivas, tudo não passará de um alívio.