Saturday, October 30, 2004

isso e eu

Dizem-nos do genocídio em Darfur e logo disparamos "e o que é que eu tenho a ver com isso?”. Contam-nos da barbárie em Bagdad, da violência extrema na Rocinha, do despotismo na Bielorrússia e respondemos “mas que tenho eu a ver com isso?” A arrogância da pergunta casa com a sua desumanidade. É um álibi de plástico quebradiço, frágil como todas as mentiras.

Wednesday, October 27, 2004

a corrida

Contaram-me daquela mulher que foi sequestrada, torturada, submetida às humilhações mais atrozes. Uma noite fugiu, correndo sem cessar. Dez anos mais tarde, quando lhe perguntaram por que queria que a verdade da aniquilação da sua dignidade fosse pública, respondeu que era tempo de deixar de correr. Penso nesta mulher e lembro-me de tanta gente que foge a correr de si mesma, à procura de uma identidade postiça, de um disfarce.

Tuesday, October 26, 2004

gente bem

Passaram por uma crise profunda mas ei-los devolvidos a uma grande pujança. São os clubes de pessoas-de-bem. Têm bandeira, fotografias nos jornais sempre que organizam mais um evento social e não lhes desgosta que seja público o bem que fazem à sociedade. Precisamos muito de pessoas de Bem. Mas dispensamos bem a camuflagem generosa e altruísta da busca de prestígio social.

Friday, October 22, 2004

... e foste-me visitar

Há entre nós uma mentalidade vingadora, que olha os presos como privilegiados que nunca deviam ter escapado ao linchamento popular. Para essa mentalidade, as prisões são lugares de indignidade que se devem manter afastados dos olhos puros das chamadas pessoas de bem. São lugares onde o direito não cabe, porque neles não há pessoas por inteiro mas sim aberrações. É para esses lugares e para a humanidade que os preenche que a Comissão Nacional Justiça e Paz quer convocar a atenção da sociedade portuguesa. Para que o critério do juízo final – “estive preso e foste-me visitar” – passe a integrar as prioridades da nossa vida, tão distraída do essencial.

Thursday, October 21, 2004

a paz dos gestos simples

Wangani Maathai não aplacou a ira dos exércitos, não organizou nenhuma conferência de paz nem se ofereceu em sacrifício para aliviar o sofrimento dos feridos de guerra. Em boa verdade, ela não fez mais do que desafiar as mulheres das aldeias do Quénia a plantarem árvores à volta das suas comunidades. Por que ganhou então o Nobel da Paz? Por uma razão muito simples: porque a paz dos pequenos gestos, a paz que não passa nas televisões nem fica para os compêndios, a paz dos direitos dos mais pobres, como as mulheres camponesas do Quénia, é aquela que se enraíza e não quebra. Como uma árvore.

Monday, October 18, 2004

bridge over troubled water

Na voz do povo, Deus aparece muitas vezes como o salvador de aflições. Aquele que aparece quando mais ninguém tem a coragem de estender a mão. Esse Deus dos sustos é, vendo bem, muito mais o Deus amigo; aliás, para muitos, o único verdadeiro amigo que se manteve. Este Deus que não é mandador mas sorridente, que não tem o caderninho do deve-e-haver sempre à mão mas nos abraça no tempo do abatimento, este Deus existe mesmo. Que o digam aqueles a quem a alma dói sem que ninguém dê conta…

Friday, October 15, 2004

a urgente insensatez

Acho que a História tem de facto dois lados opostos: o da crueldade e o da luta contra ela. A este último, a maior parte das vezes, tem-se chamado "idealismo", por assentar muito mais em crenças do que na verificação dos factos. É a partir dos sonhos, tantas vezes fantasiosos, de gente inconformada, que se têm criado ambições de uma vida mais pacífica, mais justa e mais apaixonante. Talvez não sejam ambições sensatas e realistas. Mas, diante da dimensão e da complexidade dos problemas que nos afligem no nosso tempo, só o idealismo é verdadeiramente realista.

Thursday, October 14, 2004

políticas públicas

Leio estas linhas de Eduardo Galeano: "O sistema que não dá de comer também não dá de amar: a muitos condena à fome de pão e a muitos mais condena à fome de abraços". E penso: precisamos de partilhar o pão e para isso temos políticas fiscais, económicas, de emprego e de habitação. Mas quais serão as políticas que nos permitirão partilhar os afectos?

Wednesday, October 13, 2004

contágios

Lembro-me de, nas brincadeiras de criança, haver um jogo em que quem fosse apanhado ficava "morto" e só podia reentrar no jogo se um parceiro lhe tocasse, ficando então "salvo". Há hoje muitos lugares de nojo, muitas pessoas e actividades em que não tocamos porque nos sujamos, porque nos infectam. A política, a doença, a marginalidade são apenas alguns deles. Este medo do contágio deixa-nos parados e torna-nos inúteis. Estamos como que mortos, e só nos resta a esperança de que outros toquem a nossa existência para sermos salvos.

Friday, October 08, 2004

horas extraordinárias

É claro que temos muito que fazer. É evidente que não temos vida para mudar o mundo. É talvez mesmo óbvio que é nos pequeninos gestos que podemos transformar alguma coisa. Mas é miserável pensar assim se isso servir para nos confortarmos diante de uma realidade cuja injustiça permanece e se aprofunda. Não nos convençamos de que somos heróis pequeninos. É São Lucas que nos lembra: “quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”.

Thursday, October 07, 2004

sim, porque sim...

Estou farto do lugar tolinho que é atribuído à esperança nas nossas vidas. O mundo é cada dia mais injusto, à nossa volta cresce o desemprego e o desespero de famílias inteiras, a competitividade e a delapidação de recursos tornaram-se lei. Neste contexto, dizemos uns aos outros da nossa insatisfação e da nossa revolta. E, para não terminar em vale de lágrimas, proclamamos que ainda temos esperança, porque “a esperança é a última coisa a morrer”. Só por isso. Para nos convencermos de que há uma bóia, não para fazermos sempre novo o caminho da mudança. Em que é que temos esperança, a sério?

Monday, October 04, 2004

anti-americanismo primário

Os jornais não fizeram título de primeira página, mas ontem, nas nossas igrejas, foram lidas palavras muito graves: “Diante de mim só vejo opressão e violência, nada mais do que discórdias e contendas. Por isso a lei perde a sua força e o Direito desaparece definitivamente; porque o ímpio cerca o justo e, por isso, o Direito sai falseado.” É um diagnóstico claro demais para não se perceber a quem se dirige. E não nos venham dizer que é de precipitada má intenção: foi escrito por Habacuc, no século VII a. C., quando os Babilónios começavam a dominar todas as regiões do Próximo Oriente.

Friday, October 01, 2004

b-a-ba

Com tantos acidentes de preparação, o ano lectivo começa sem se terem feito algumas reflexões fundamentais. A primeira é: para que formamos os nossos mais novos? A segunda é: que esforço social fazem os portugueses para que haja condições efectivas de esta ser uma prioridade colectiva? A terceira é: a educação em Portugal é um bem comum ou é um privilégio a que só chegam alguns? A quarta é: os envolvidos na educação (estudantes, professores, pais, comunidade) sentem-se felizes com o que fazem ou é uma tarefa penosa? Desculpem perguntar coisas tão básicas. Mas acho que precisamos muito de olhar para as escolas e entusiasmarmo-nos.