asas

Os custos da emancipação são sempre grandes. Para quem vai e para quem fica. Há sempre qualquer coisa de brutal no corte da protecção. Um luto. O paternalismo e a segurança que ele dá agarram-se-nos à pele com demasiada facilidade. E quando o cordão se parte, quando as asas batem, dói. Dói muito. Mas a estagnação dos protectorados é uma ilusão podre. E a emancipação, aquela que dói fundo, é sempre um avanço na vida.

laboratório

Primeiro dissemos a África que o Estado forte era a solução para o seu desenvolvimento. Depois dissemos-lhe que a solução era o Estado mínimo. Nessa altura falámos-lhe de programas de ajustamento estrutural da economia. Mas, poucos anos depois, passámos a afirmar que o combate à pobreza é que devia ser a prioridade. África tem sido um laboratório de experimentação de políticas económicas e sociais. Cada pessoa que morre com fome ou com malária ou sida em África é a personificação do nosso pecado da irresponsabilidade.

pretensão

Um projecto de cooperação numa aldeia de um país pobre em África consistiu em abrir um fontenário no centro da povoação, para libertar as pessoas da necessidade de irem ao rio abastecer-se de água. Surpreendentemente, o fontenário, uma vez aberto, foi ignorado pela comunidade local. A razão era simples: ir ao rio era a oportunidade de as pessoas se encontrarem e conviverem. Ninguém tem o segredo da felicidade do outro. E muitas vezes a generosidade é apenas uma cobertura da arrogante vontade de dominar. Em casa, na cidade, no mundo.

caridade

Sabem os cristãos o que são os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio? Há alguma dinâmica nas paróquias e nos movimentos da Igreja para promover a consciência do imperativo ético de atingir mínimos de decência à escala mundial com a quantificação e a calendarização que as Nações Unidas lhes deram há quase uma década? De que serve tanta retórica sobre a unidade de todo o género humano se ignoramos os caminhos que se vão abrindo no mundo para lhe dar corpo?

paz

"Ao ver cair as Torres Gémeas, em 11 de Setembro, senti que tinha contribuído para o seu derrubamento. Arrependi-me de não ter feito até agora o suficiente pela paz." Esta surpreendente confissão de um monge budista coloca-nos no cerne do que dá sentido à luta pela paz: é que as raízes da violência estão disseminadas e a nossa conversão tem que ser interminável.

ser soli(d/t)ário

Quando o mais velho lhes pediu para aplaudirem com uma só mão e sentirem o barulho das palmas, ficaram todos perplexos. O mais velho sorriu: "A nenhum de vós ocorreu aplaudir com uma mão na mão do vizinho do lado? Porquê?" É fácil julgar impossível o que não podemos fazer sozinhos. Difícil mesmo é partir do princípio que só juntos podemos fazer as coisas mais importantes.

castidade

Conta Juan Masiá a história de dois monges que à beira de um rio foram interpelados por uma jovem belíssima que lhes pediu ajuda para passar para a outra margem. O monge mais velho pegou na jovem ao colo e levou-a. Depois despediram-se e seguiram o seu caminho. Muitos passos depois, o monge mais novo não se conteve: "Como pudeste tu pôr em causa os teus votos de castidade e levar nos braços uma mulher quase nua?" Respondeu-lhe o mais velho: "Eu levei-a nos braços cinco minutos, fazendo-lhe um favor. Tu ainda a levas no coração e na cabeça passadas duas horas...". Sem mais comentários.

gente

Onde havia direitos sociais passou a falar-se de privilégios. O emprego, mesmo sem direitos básicos, a segurança social, mesmo em queda, o ensino, mesmo selectivo, passaram a ser vistos como benefícios só para alguns e não direitos de todos. O mínimo da dignidade passou a ser referido como o máximo das possibilidades. Estranho e arrepiante tempo este, em que ser-se gente não é coisa que se garanta a toda a gente!...

maravilhas

A votação das sete maravilhas do mundo foi porventura apenas um evento mediático. E não tem sentido discutir se cabiam ou não mais outras tantas maravilhas do engenho humano na lista das referenciadas. Seja lá como for, a arquitectura da relação com o divino marca presença forte nas coisas mais bonitas que construimos. E isso dá que pensar. A vontade de dar corpo ao sublime, ao indizível, levou o homem para o campo do génio. A pensar em Deus, o homem engrandece-se.

live earth

Concertos em vários pontos do globo deram suporte a um grito de alerta – mais um – sobre a preservação do ambiente. Foi um desafio – mais um – à Igreja para ter uma palavra e, sobretudo, um gesto pedagógico. Fica a desconfortável sensação de oportunidade perdida, em ambos os casos. Mais uma. Para o mundo, isso chama-se inconsciência. Para a igreja isso chama-se pecado.

oração (ii)

Senhor, torna-me capaz de descobrir o bem onde o houver, mesmo nos sítios onde menos espero. E de encontrar qualidades nas pessoas que achava que não as teriam. E concede-me de lho dizer sempre com ternura. Senhor, dá-me a graça de uma velhice encantada com o fluir da vida.

oração (i)

Senhor, guarda-me do terrível hábito de pensar que devo sempre dizer algo sobre todas as coisas e em todas as circunstâncias. Liberta-me da obsessão de pretender pôr a vida dos outros em ordem. Torna-me sábio, mas não azedo; atento, mas não autoritário. Senhor, liberta-me do pecado da velhice arrogante.

busca

Senhor, como poderei suportar o que vi se não te vir? A busca do sentido é o que dá sentido à nossa busca. Deus está aí, nas perguntas mais densas sobre a nossa condição frágil e incerta. Deus não é uma resposta sossegada e nítida. É sempre interrogação acrescida.