Friday, April 24, 2009

nota de memória

Faz hoje 35 anos, eu era estudante de um liceu só para rapazes - que isso de juntar os dois sexos era obra de Satanás e só servia para exacerbar as hormonas revoltadas. Nesse meu liceu havia um fantasma: o de irmos morrer a uma guerra estúpida em nome de uma pátria que mandava em nós sen nos dar nenhum carinho. Ah, essa guerra (dizia-nos o fantasma) era provocada por terroristas e com terroristas não se negoceia. Viviamos todos com esse fantasma, sem falarmos muito com ele a não ser para lhe atirar umas pedradas de vez em quando. Nos corredores e recreios do meu liceu passavam de mão em mão papelinhos amarrotados com letras de canções proibidas e partilhavam-se suspiros pela liberdade trazida pelas fotografias dos grandes festivais hippies de Woodstock ou da White, ou pelas leituras às escondidas de livros de bolso clandestinos. Tinhamos professores aterrorizadores e professores magníficos - mas nem uns nem outros viviam sufocados em fichas, indicadores, objectivos e coisas do género.
Faz hoje 35 anos, eu tinha, nós tínhamos medo. Um medo pastoso, cinzento escuro, omnipresente, feito tanto da noção de estar vigiado como do sacrossanto mandamento do respeitinho muito lindo.
Faz hoje 35 anos, os jornais noticiavam um crescimento muito forte da economia portuguesa. Devia ser verdade - pelo menos a avaliar pelas fotografias sorridentes das famílias de bem dos banqueiros e dos comendadores, das chamadas "empresas do regime". É certo que também vi fotografias de gente, de muita gente, a emigrar para os bidonville de Paris. Mas isso era gente "sem eira nem beira" e, por isso, sem direito a atenção dos senhores engenheiros de então.
Faz hoje 35 anos, a filha dos meus vizinhos, um pouco mais velha do que eu, levou uma valente reprimenda do pai por ter chegado a casa à uma da manhã na noite anterior. Ainda por cima cheirava a tabaco! Podia lá ser! Uma rapariga! O que é que iam dizer os outros?
Faz hoje 35 anos, não houve nenhuma greve. Pelo menos não veio no jornal. Parece que houve umas cargas valentes da polícia no Barreiro - era o que se dizia - "para manter a ordem e fazer cumprir a lei".
E, de repente, no meio desta memória magoada, irrompe a pergunta perturbadora do José mário Branco: "Que dia é hoje, hãn?!"
Valeu a pena a manhã seguite? Claro que valeu a pena. Pela emoção e pela lluta, pelo destemor e pela franqueza, pela justiça e pelas palavras - valeu muito a pena. Gracias a la vida por isso. Ah, é verdade: faz hoje 35 anos não houve Conselho Superor na Antena 1.
(Texto lido hoje na rubrica "Conselho Superior", da Antena 1)