roxo

O roxo da Quaresma não cobre um tempo de trevas nem de punição da alegria. Vejamo-lo antes como tempo de retorno ao essencial. Tempo de não fugir à contemplação da morte como exigência da pergunta pelo sentido da vida. Este não é um roxo de luto mas de densidade.

tentações

"Se me adorares...". O recado insinuante dado a Jesus está aí nas montras, nos ecrans, nas vozes e nas imagens. No nosso dia-a-dia. "Se me adorares...". A sedução do poder, do prestígio, da carreira, do reconhecimento social, tornou-se em cultura dominante. "Se me adorares...". Quem resiste à tentação?

coerência

Uma Igreja fiel ao mandamento do amor aos pobres tem que levar isso totalmente a sério. Pode uma Igreja assim dar prioridade à conservação sobre a transformação? Pode uma Igreja assim centrar-se sobre a vida individual e passar ao lado das estruturas que geram pobreza? Pode uma Igreja assim fechar-se na sacristia ou na comissão fabriqueira com medo do mundo?

pó

Não é de castigo da corpo e do riso que se faz a quarta feira de cinzas. O cristianismo não é a religião dos sisudos, dos que receiam a força subversiva do humor e separam a alma do corpo como se este fosse sujo. Este não é um dia de castigo, mas sim de reconhecimento da nossa pequenez. Em pó nos havemos de tornar. Só ficará a alegria que tenhamos trazido aos outros.

disfarces

Não era preciso um dia especial para pôr máscaras. É o que mais fazemos no dia-a-dia. Fingimos que prezamos o bem comum e mascaramos o elogio do triunfo individual a todo o preço. Fingimos que somos amantes da paz e mascaramos a aceitação da violência da pobreza e da exclusão. Fingimos que temos o diálogo como um valor e mascaramos a imposição do nosso olhar aos outros. Quando caírem as máscaras, que humanidade verdadeira teremos para oferecer?

nas entrelinhas

Os pobres, os famintos, os que choram, os odiados e insultados são bem-aventurados. Não se enganou Jesus? Não é uma ofensa louvar a fome das crianças do Sahel? Não é uma tremenda arrogância louvar o choro das mulheres do Darfur? Não é um desrespeito dizer a estas pessoas que hão-de ser recompensadas do seu sofrimento só depois do fim dos tempos? Não, porque há um versículo nunca escrito que se lê nas entrelinhas: “Bem-aventurados os que, com mansidão e humildade, não se resignam e lutam para que o infinito da salvação esteja sempre mais perto”.

pretexto

Os negócios inventaram esta data para vender mais coisas. Mas não conseguirão nunca vender o amor. O pobre do santo Valentim jamais se imaginou famoso em centros comerciais. Mas aproveitemos a estratégia rasteirinha para nos enamorarmos. Para dizermos ao outro que o amamos. E que essa é uma prenda sem preço.

aviso

“Ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis!” O aviso foi feito, alto e bom som, em todas as igrejas, ontem mesmo. E é feito sempre, a toda a hora, para quem o quiser ouvir. Por que é que fingimos que não é nada connosco?

decidir

Há decisões difíceis para tomar. São sempre difíceis as decisões que tocam fundo na nossa humanidade. Há caminhos diferentes. E isso é um bem. O que não vale é encontrar alibis para descansar as consciências. O que não vale é fingir que não há uma realidade que nos exige desinstalação. Decidamos, pois. E peçamos o dom da intranquilidade. Agora e sempre.

o sábado

Não é de tábuas de leis, rígidas como rochas e automáticas como computadores, que precisamos para guiar as nossas escolhas mais difíceis. De nada nos serve a moral feita de princípios gerais para aplicação cega às vidas concretas. Precisamos de atenção ao dia-a-dia real e singular dos homens e das mulheres. A vida não é a preto e branco. E não há pacotes de moral à venda no super-mercado.

urgente

Abundam as profissões de fé na prioridade a dar às políticas da vida toda - do emprego à saúde, da segurança social à habitação. É um sinal de esperança se não for retórica para consumo eleitoral. Há quem prometa para breve a revolução do amor. Que se cumpra a promessa. Rapidamente.

antiquada

Quandoa viram dar esmola, troçaram dela: "se vierem mais dez, ainda te fica num dinheirão, tem cuidado!". Ela levou a brincadeira a sério e lembrou que dez moedas daquelas eram menos que o preço de um maço de tabaco. Disseram-lhe depois que a esmola não transformava o mundo e que só ajudava a perpetuar a injustiça. A isso ela respondeu que o grito da fome e da miséria ouvia-se agora e era agora que tinha que ter uma resposta. Chamaram-lhe antiquada. Ela pensou que angustiada era mais certo.