e se...

Se um filme ou um romance puserem em causa a nossa fé, pobre fé a nossa. Como se ser crente fosse função do percurso afectivo de Jesus… Como se a nossa fé se fundasse no Jesus solteiro mais do que no Jesus absolutamente fraterno e cuidadoso para com todos e todas à sua volta… Os pruridos face à hipótese de um Jesus mais próximo dos nossos entusiasmos e dos nossos desgostos com o amor dizem muito da relação difícil que temos com o essencial da fé e, ao mesmo tempo, com o essencial do amor.

comunidade

Quando as bandeiras forem de novo guardadas nas arcas, restará algum vestígio denso da experiência de comunidade? Ou tudo não terá passado de uma sensação, de uma fervura de entusiasmo, tão superficial como um cântico ou um arrepio? E será então a própria comunidade que mandamos para a gaveta do esquecimento? Depois de guardarmos as bandeiras, virá o tempo em que nos interrogaremos sobre os laços que tecemos uns com os outros para que a comunidade seja muito mais do que um vento momentâneo.

ressentimento ou revolta?

Tornou-se moda a suspeita de que a História foi falsificada, de que forças ocultas se encarregaram de suprimir os caminhos de uma alternativa que nos teria levado para um presente e um futuro totalmente diferentes. É importante ter consciência de que a História é sempre a versão dos vencedores. Mas entender que tudo ficou decidido no passado e que o presente e o futuro não senão a expressão duma imensa cabala do Mal contra o Bem é uma inaceitável confissão de derrota antecipada. A mudança é hoje. E ninguém a fará por nós.

mudar o quê

O grande problema da pobreza não são os pobres, são os ricos. No mundo, a grande ameaça não vem dos países pobres, a grande ameaça é a vida dos países ricos, que criam e perpetuam a periferização dos países pobres. Ajudar os pobres é muito importante. Servi-los ainda é mais. Mas verdadeiramente essencial é mudarmos a nossa vida de não pobres. Se não for assim, todo o nosso compromisso com os pobres se arrisca a ser mero fingimento.

ajuda ao desenvolvimento

Às vezes temos a tentação de ser Deus. De conduzir a História pelos nossos desígnios. De guiar a vida dos outros, de todos os outros, pobres coitados totalmente carentes da nossa ajuda sem fim. Nos outros não vemos senão a expressão da fragilidade e do desnorte. E em nós reconhecemos saber para curar esses males e generosidade a rodos para o disseminar. E aí vamos, desinteressados e cheios de amor pelos outros, para os salvar e trazer de volta à felicidade. Mas qual felicidade: a deles ou a nossa?

a verdade da mentira

O título do livro é provocador: “quanto mais vês menos sabes”. Fala da mentira mediática na cobertura das guerras. De como algumas das principais máquinas de produzir notícias moldam as histórias até elas validarem o recurso à guerra. Apesar das fantásticas conquistas tecnológicas aplicadas à comunicação, sabemos cada vez menos acerca das verdades do mundo. Da próxima vez que se actualizar a tabela dos pecados, proponho que a cultura de mentira seja considerada uma estrutura de pecado.

aqui

Fazer alguma coisa pelos que nada têm é, felizmente, uma vontade que vem passando de geração em geração. Agora, há uma grande mobilização de generosidades com África, como há anos houve uma grande mobilização de projectos transformadores para a América Latina. Talvez chegue o dia em que a gente fresca que quer romper com a vida desinteressante que tem invista o seu melhor aqui mesmo. Porque os mais pobres dos pobres também dormem no vão dos nosso prédios, também são abandonados nos nossos jardins públicos, também se arrastam pelas nossas ruas.

ânsia

É com selos agora, como foi com pequenos depósitos antes. Ciclicamente vêm à tona casos de uma espécie de banca paralela e informal. A falta de escrúpulos de quem promove esses negócios não é o que mais importa. O que precisa de ser interrogado é o fascínio pela riqueza rápida e sem esforço que faz correr tanta gente ao chamariz. É essa ânsia pelo El Dorado que nos deve interpelar. Porque ela nos coloca uma pergunta essencial: por que é que o futuro que construímos em cada dia que passa não é entusiasmante para tanta gente?

o grito

Caminham em silêncio. O que magoa o corpo não se compara ao que aflige a alma. Na sua pobreza de sempre, não tiveram nenhum poder que desse importância ao seu drama pessoal. E foi ao rosto bondoso de uma mulher que se entregaram. Nem por obediência nem por transacção de favores. Apenas porque a sabem expressão plena do cuidado. O que por estes dias vem de Fátima é sobretudo esse grito imenso e irreprimível pedindo ternura, atenção e cuidado.

os seniores

Em tempo de perguntas angustiadas sobre o sentido da educação em Portugal, as universidades sénior ou da terceira idade lançam uma grande interpelação ao país. Elas mostram que a utilidade económica não é critério único da vontade de conhecer. Elas mostram que a sabedoria é muito mais exigente e diversificada do que a acumulação de informação. Elas mostram que temos que aprender a fazer mas que, antes disso, temos que aprender a pensar e que aprender a escolher. A revisão de vida – ver, julgar e agir – dava uma boa divisa para as políticas educativas.

nossa senhora

Celebrar o rosto materno de Deus. O culto de Maria ou é uma chamada à conversão ao cuidado e à disponibilidade ou é algo deturpado para difundir uma imagem de mansidão que legitime a menoridade social e eclesial das mulheres. Neste mês que os católicos dedicam a Maria, a nossa ignorância do Deus Mãe fica mais evidente. Nos altares e na vida, Maria é um desafio a um olhar e a um coração mudados.

road map

As nossas vidas navegam entre princípios, convicções e resultados. Guiamos a existência por opções difíceis que fazemos, inspirados, mesmo sem o sabermos, por estes códigos de conduta. E, pelo meio, rompe a ética do cuidado. Não é feita de rupturas, fundadas em princípios fortes, nem é feita de frio cálculo, antecipando efeitos, directos ou longínquos, das nossas escolhas. É feita de atenção, anónima, ao pequeno gesto, ao suspiro ou ao sorriso do outro. É feita da mais densa das humanidades.

bênção de quê?

Começou o tempo das festas estudantis. Mas não há nenhum motivo consistente para celebrar com entusiasmo o futuro de quem estuda. Que caminho escolhem os crentes diante desta contradição tão flagrante? Interrogam esse futuro e ajudam os mais novos a porem-se as perguntas que incomodam? Ou entregam-se ao cumprimento das rotinas sociais de conveniência? Por onde passa a fidelidade ao Evangelho diante da despedida da Universidade?

primeiro de maio

Numa sociedade que promete a felicidade por toques de mágica ou como prémio à esperteza de quem foge às responsabilidades sociais, o trabalho perdeu valor de referência. Numa cultura que enaltece a competitividade e desvaloriza a solidariedade, o trabalho deixou de ser um campo de afirmação de direitos e passou a ser uma performance guiada pela vertigem da optimização. Neste dia do trabalhador, as memórias de lutas antigas e de dignidades espezinhadas regressam, esfumadas no tempo. Elas trazem de volta à nossa consciência colectiva essa ligação íntima entre o trabalho e a criação do mundo. É uma consciência incómoda para os nossos tempos.