Monday, May 30, 2005

a rocha e a areia

Fundar a condição crente na rocha sólida ou fazê-la assentar sobre a areia inconsistente. Esse dilema, ontem recordado, tem percorrido a história da igreja. O tempo das seduções da certeza e do discurso forte diante do mundo parece estar a voltar. Na igreja, na política e no resto. Por mim, vivo a fé como um vento, que tudo revolteia, que não deixa nada no lugar e que nunca permite o aconchego das posições certas.

Friday, May 27, 2005

dar perdão

Pedimos perdão e somos capazes de o dizer sem embaraço perante os outros. Mas temos uma séria dificuldade em dizer o quê e quem perdoamos. Dar perdão profundo, apagando todo o vestígio de ressentimento, é talvez o mais exigente dos gestos diante da experiência da dor e da ofensa. A sua dificuldade é a expressão do nosso fechamento.

Wednesday, May 25, 2005

as árvores da vida

As paisagens da vida de Jesus foram quase sempre áridas e não incluem florestas. Talvez houvesse um hino bíblico à sombra, à frescura e até à retenção de CO2, se Jesus tivesse vivido na Europa Central. Talvez. O certo é que, com hino ou sem ele, este tempo de secura e de efeito de estufa nos desafia a todos - aos cristãos, desde logo - a ter ternura e cuidado com a floresta. Ela é hoje um elemento muito frágil e ameaçado da criação.

Monday, May 23, 2005

contas crentes

De que tamanho é o défice, pergunta-se nos corredores do poder. A aritmética do que se gasta e do que se cobra é complexa e inacessível aos cidadãos comuns. São contas de outro rosário, dirão muitos cristãos. E, no entanto, saber como e onde se aplicam os recursos públicos devia ser um foco de interesse fundamental das comunidades cristãs. Porque o Reino, que se constrói a cada momento, faz-se de opções muito concretas. Como a de investir aqui ou cortar acolá.

Friday, May 20, 2005

à distância

Gosto de reportagens com jogadores do Porto, do Sporting ou do Benfica que recordam as suas rivalidades de há mais de vinte anos. A competitividade exacerbada perde sentido e aquilo que foi tensão de tudo ou nada torna-se em episódio divertido. Soubessemos nós ver nisso como toda a violência - a desportiva e as outras - é uma construção e não algo natural. Soubessemos nós ver nisso como, à distância, toda a crispação entre aspirantes a vencedores - no desporto e no resto - é ridícula.

Wednesday, May 18, 2005

num ápice

É uma final. Em noventa minutos, ou talvez menos - quem sabe se apenas na fracção de segundo dum penalty - joga-se tudo. A vida é mesmo assim. Feita de um caminho longo no qual cada gesto, cada decisão ou falta dela, decide tudo. No fim haverá vitória ou derrota. Cruelmente, não por avaliação de conjunto. Mas sim porque, no momento certo, houve clarividência, discernimento e, sobretudo, coragem.

Friday, May 13, 2005

a caminho

A peregrinação faz impressão a muita gente. A promessa ou o sacrifício que a acompanham são vistos com estranheza talvez por serem expressões de uma confissão de pequenez e de uma fragilidade nos antípodas da confiança ilimitada no progresso e na razão. O próprio caminhar sem fim é ininteligível aos olhos de quem pensa o caminho só como o trajecto útil e breve entre dois pontos. Neste dia, deixemo-nos incomodar pelos peregrinos, pelas suas promessas, pelos seus sacrifícios e pelo seu caminhar. Que essas coisas estranhas nos ponham a pensar sobre o que somos.

Wednesday, May 11, 2005

sim sim, não não

Acredito que o 'não' é o princípio da política e que o 'sim' é o princípio da fé. Acredito que a insubmissão face a todas as verdades estabelecidas e a insistência em divergir abrem o campo para a política e que ela, como actividade nobre, arranca dessa coragem de não prescindir da recusa. Acredito que a ousadia de dizer 'creio' sem bases empíricas nem provas científicas abre o nosso coração para a humildade da fé e que ser crente é um acto destemido de aceitação. Talvez seja isto que se pretende vincar na Bíblia com o desafio de que "sejam as vossas palavras sim sim, não não".

Monday, May 09, 2005

frenesim abençoado

Não sei bem o que têm os estudantes para festejar por estes dias, nas suas queimas das fitas. Sei que o horizonte de futuro para quem estuda é muito carregado. Sei que o mundo do trabalho aparece às gerações de universitários actuais sob a forma de precariedade, de profissões desqualificadas e invariavelmente desligadas do que se estudou. Por isso, a festa soa-me cada vez mais a frenesim vazio. E as respectivas bênçãos das pastas, passando ao lado desta realidade, tornam-se puros rituais religiosos desse vazio.

Friday, May 06, 2005

classe A

A excelência passou a ser uma referência repetida do nosso vocabulário. É assim na qualidade dos serviços, no desempenho das organizações, na prestação dos trabalhadores ou dos gestores. Exige-se excelência como marca que distinga da mediania. Não consta que a excelência fosse também uma exigência evangélica. Mas isso não pode ser álibi para a falta de exigência na vida, no discurso e na forma de presença dos cristãos na sociedade. Resignarmo-nos à mediania é abdicarmos de ser totalmente exigentes como o foi Jesus de Nazaré.

Wednesday, May 04, 2005

todos os rostos

Agora começa o mês de Maria. O mês que evidencia a presença central das mulheres na fé dos cristãos. Este rosto materno de Deus tem as feições de Maria, mas tem que ter também os traços de todas as mulheres que dão Jesus ao mundo a cada momento que passa. Não há uma forma única de se ser cristão – homem ou mulher. E é essa pluralidade de modos que, para os homens como para as mulheres, importa aprofundar. Neste mês de Maria, precisamos de saber encontrar os rostos que ainda faltam ao rosto feminino de Deus.

Monday, May 02, 2005

ao trabalho!

Talvez por ser domingo. Talvez por dar que pensar. Talvez pelo desconforto de memórias passadas. Por qualquer destas coisas ou por outra coisa qualquer, o dia do trabalhador passou ontem quase sem se fazer notar na vida de muita gente. Nas paróquias e nas comunidades cristãs, as referências foram poucas e de superfície. Foi pena. Perdeu-se mais uma oportunidade para confrontar todo o povo cristão com o sentido que o trabalho tem como teste à vivência da solidariedade. Para questionar o lugar que ele ocupa no nosso dia a dia: sustento, sacrifício, suporte de acumulação de riqueza e de estatuto pessoal, ou participação empenhada na criação? Talvez tenhamos que esperar pelo próximo 1 de Maio para pensar nestas coisas. Mas, então como agora, havemos de arranjar uma série de desculpas para não o fazer.