Friday, November 28, 2003

Todos dávamos excelentes primeiros-ministros mas todos fugimos de ser administradores do condomínio. O esforço e o desgaste do dia-a-dia são um teste decisivo à nossa entrega pelo bem comum. É com os mais próximos, com aqueles a quem detestamos tantas características e traços de personalidade e não com números ou estatísticas sem rosto que edificaremos o bem comum. O bem comum não é um fingimento encenado, é um horizonte de transformação profunda das nossas vidas. Ou o fazemos com os homens e mulheres concretos ou pura e simplesmente não o faremos.

Fazem-nos falta jornalistas que sejam correspondentes de paz. Ser correspondente de guerra tornou-se num lugar quase tão prestigiado como arriscado. Levar a todo o mundo os detalhes de cada conflito é tido como uma missão de interesse público. Ao contrário, quando se reclama um jornalismo ao serviço da paz logo surgem as vozes críticas a apontar o pecado da falta de objectividade e da parcialidade. Triste o mundo em que a narração da guerra é objectiva e a invenção da paz é parcial.

Promovido pela Comissão Nacional Justiça e Paz, o fórum “Globalizar a paz, construir um mundo justo” veio recolocar a necessidade de uma paz justa no centro da reflexão e acção dos cristãos. É tempo de, em Portugal, as pessoas e as organizações para quem a paz constitui uma inquietação de primeira ordem se encontrarem para afirmar o seu sentir e o seu pensamento. Está na altura de abandonarmos a arrogância da convicção de que fora da Igreja não há salvação e de nos convertermos humildemente à certeza de que fora do mundo não há salvação.

Um dos maiores médicos portugueses de sempre, Abel Salazar, disse um dia que "um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe". Conhecimento não é o mesmo que sabedoria. Podemos acumular informação técnica e manusear na perfeição os dados mais sofisticados da actualidade. Mas sem densidade humana e sem o sentido último das coisas, o nosso conhecimento será frio e vazio. Precisamos de ser culturalmente sólidos e exigentes. Mas, mais que tudo, devemos ser humanamente sábios.

Tuesday, November 18, 2003

De Timor Leste vêm imagens de solidariedade. A RTP está a dota aquele povo irmão de meios tecnicos e humanos para que a televisão local seja uma realidade. Fala-se em programação em Português e vêem-se olhos que brilham a antecipar a magia dos sons e das imagens. Os cépticos dirão que tudo não passa da defesa de interesses económicos e culturais. Eu prefiro pensar que o gesto é gratuito. E que é a nossa comum humanidade, e só ela, que sai reforçada deste empreendimento solidário.

Pediram-me há dias que identificasse o que de melhor e o que de pior tivesse sucedido nessa semana. Em poucos minutos consegui juntar três ou quatro factos que podiam seguramente ser considerados o pior da semana. Mas apontar o melhor da semana revelou-se um calvário. Testei a minha dificuldade partilhando-a com amigos. E a dificuldade acabou por se multiplicar. O nosso olhar selecciona rapidamente o que é negativo, mas resiste enormemente a acolher o que é bom. Vivemos mergulhados em desencanto e ressentimento, enquanto reforçamos a nossa carapaça contra o entusiasmo e o optimismo. Dai-nos Senhor a simplicidade de nos deixarmos seduzir pela bondade e de nos deixarmos reencantar pelas pequeninas e anónimas coisas boas que a vida nos dá.

Saturday, November 15, 2003

Cada vez é mais cedo que começam a ser instaladas nas nossas cidades as iluminações de Natal. Dizem-me que é a concorrência entre as empresas de luminotécnica que o impõe. Talvez seja. Mas esta ânsia por que o Natal chegue depressa não me é indiferente. São os interesses comerciais a ditar leis, certamente. É o estímulo antecipado do apetite consumista que é posto a funcionar, claro. Mas assalta-me, por um momento, a ilusão de que é também uma consciência difusa de que nos falta Natal nas nossas vidas quotidianas. E que, talvez o brilho das luzes seja a antecipação querida da Luz que precisamos para dar sentido aos nossos caminhos esforçados.

Não há orçamentos cristãos, como não há políticas externas cristãs ou propinas cristãs. O envolvimento dos cristãos na política não deve ser orientado para a reserva de uma coutada de poder cristão contra as outras propostas mas sim pela interpelação à pluralidade de soluções com base nos valores do Evangelho. É exigível aos cristãos, por isso, que saibam ser firmes nos princípios e tolerantes nas mediações. O debate político não é um fardo que temos que suportar mas sim um teste à nossa capacidade de sermos testemunhos da esperança nos mais diferentes domínios da vida colectiva. Sem a tentação de condenar os diferentes de nós ou de nos refugiarmos no guetto seguro da intocabilidade.

Em que termos é que se põe, nas nossas escolas, nas nossas famílias,ou mesmo nas nossas comunidades cristãs, o problema do horizonte profissional dos mais novos? Creio que, no essencial, continuamos a navegar num mar de ilusões, em que a riqueza individual, o bem-estar e o prestígio são os valores que se anunciam, em fundo, como a melhor promessa para quem inicia um trajecto de trabalho. Ora, talvez os cristãos devessem ter a coragem de pôr em causa a continuação desse projecto de vida como dominante. Talvez se devesse exigir aos cristãos que estivessem na primeira linha do anúncio de que, neste mundo, as profissões são cada vez mais, um campo em que se testa a solidariedade. E que, para levar esse desafio a sério, a formação dos novos profissionais os deve convocar ao serviço, à humildade de aprender sempre mais e à desinstalação material. Quando os cristãos forem capazes de desempenhar este papel com firmeza, talvez a sociedade se sinta confrontada com um sério projecto de conversão.

Saturday, November 08, 2003

As estatísticas são sempre uma linguagem enigmática. Os números, de tão grandes, geram frequentemente reacções de impotência ou de indiferença. É assim, por exemplo, com os números, sempre a crescer, do desemprego em Portugal. Já acostumados a números muito elevados, os cristãos tendem a responder-lhes com a compaixão para com os desempregados concretos. Às vezes precisamos de um rosto para experimentarmos a solidarieade. Mas isso não deve fazer-nos ignorar que o desemprego não é uma anormalidade transitória que causa pena, mas sim um desfuncionamento da sociedade fundado em contra-valores. Perante o desemprego que cresce em Portugal, exige-se aos cristãos bem mais que a assistência caridosa. Exige-se-lhes a denúncia das estruturas de pecado, tanto económicas como culturais, que fazem com que aceitemos as estatísticas como uma fatalidade.

Wednesday, November 05, 2003

Talvez as praxes académicas não sejam uma questão suficientemente importante que justifique uma tomada de posição da Igreja. Mas, valha a verdade, a Igreja às vezes fala enfaticamente sobre coisas muito mais triviais. Ora, talvez valesse a pena que a voz da Igreja se fizesse ouvir para analisar pública e criticamente o sentido de festa e de convivência que está presente nos rituais das praxes. Talvez valesse a pena que a voz dos cristãos se fizesse ouvir para denunciar a perversão da noção de comunidade que se adivinha no culto das praxes. Talvez a voz dos bispos não só em momentos de festa como a bênção em massa das fitas e das pastas, mas também diante de tensões e de clivagens como as que são suscitadas pelas praxes. Porque uma Igreja que abençoa e seduz não pode abdicar de criticar e de incomodar.

Tuesday, November 04, 2003

Esta religião é surpreendente. Festeja os seus santos num dia para, logo no dia seguinte, recordar com tristeza os defuntos. À exaltação da vida faz seguir a memória da morte. Mas é assim que está certo. Porque o cristianismo nem cultiva a nostalgia dos que já partiram nem faz a apologia de uma vida que se esgota em si mesma. A festa da vida plena e o acolhimento da morte como exigência de humildade são dois rostos do cristianismo. Ou não fosse ele um chamamento permanente à transformação da morte humilhante na cruz em vida sempre renovada.

Saturday, November 01, 2003

Abro a televisão, abro o jornal, ligo a rádio e sou brutalmente confrontado com supostos desabafos que alguém terá tido em telefonemas com amigos. E, de seguida, vêm os comentadores encartados fazer análise política sobre a devassa da privacidade alheia. Entretanto, há uma constituição europeia para discutir, há pontes pedonais que caem em estradas hiper-movimentadas, há planos de despedimento anunciados para 2000 trabalhadores numa só empresa. Vejo tudo isto, e vejo também muitos cristãos sequiosos de sangue e de cuscuvilhice. E tudo isso me faz sentir, com dor, a nossa persistente condição de pecadores.